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sábado, 22 de março de 2014

O vazio e o vício



Afinal, o que causa a dependência química? Para o médico húngaro-canadense Gabor Maté, a resposta está na insatisfação humana, que nos leva a buscar maneiras de preencher o vazio.


POR

Ronaldo Bressane


Edição 134


"I can't get no satisfaction", cantavam os Rolling Stones, detectando o vazio, "a falta que ama", na expressão de Drummond. Uma fome voraz pelo poder levou Mick Jagger a conquistar o mundo, conforme conta a biografia de Philip Norman (Companhia das Letras). Com perdão pela redundância, o vazio também nos move para o buraco, como se lê em outra biografia de um stone - no caso, Vida, de Keith Richards (Globo), em que o guitarrista detalha as batalhas contra a heroína, a cocaína e o álcool. "Meu vício tinha fundamentalmente a ver com esquecer", afirma Richards. Mick, que nunca se viciou em nada - a não ser talvez em mulheres -, teve infância feliz e lar estruturado; Keith, uma criança solitária em uma família que ligava mais para o trabalho que para ele, sequer foi ao enterro dos pais. A relação drogas/infância pode parecer simplista - mas ela é demonstrada de modo inapelável pelo médico e escritor húngaro-canadense Gabor Maté como responsável por alimentar o vazio, companhia inseparável no caminho que leva alguém a tornar-se dependente de drogas ou de comportamentos recorrentes.


Durante décadas, o doutor Maté cuidou de dependentes em drogas, centrando seus esforços paliativos na "cracolândia" do Portland Hotel, em Vancouver, Canadá, onde, como na notória zona do centro de São Paulo, arrastam-se as tristes figuras de pessoas consumidas por metanfetamina, heroína, cocaína e álcool - conforme contou em conversa via skype com a Vida Simples. A morte sempre rondou esse jovial médico, cujo peso dos 69 anos só é denunciado pelas rugas. Em 1944, aos dois anos de idade, havia perdido grande parte da família, de origem judia, nas mãos dos nazistas. Emigrado para o Canadá, estudou medicina e especializou-se em cuidados paliativos. Autor de quatro livros em que investiga dependência química, transtornos de déficit de atenção e outras enfermidades, lançou em 2011 In The Realm of the Hungry Ghosts ("No Reino dos Fantasmas Famintos", em tradução livre), best-seller no Canadá e nos eua. Gabor tem o dom de um Drauzio Varella para narrar os encontros com seus pacientes, sem esperança nem temor, com implacável honestidade, porém com compaixão: algumas histórias parecem inverossímeis, de tão pesadas - felizmente, o humor tipicamente judeu de Gabor combinado à sua militância zen ameniza o tom do livro. Após centenas de relatos tristemente parecidos, Maté afirma que nenhum tratamento contra a dependência química surtirá efeito se não for direto à causa, a que deu o nome de vazio.


Em sua rotina diária, conta Maté no livro, um dependente está sempre tentando aliviar o sofrimento. "É assim que começa: os dependentes sofrem antes mesmo de dependerem de alguma substância ou comportamento. É dessa dor que estão fugindo quando se drogam", diz. É comum que tenham sido abusados durante a infância - e histórias de abandono, de abusos morais ou sexuais na primeira idade se repetem a cada consulta de Maté. Se o físico é indissociável do psicológico, segundo o médico, como seria seu tratamento? "A primeira coisa é parar de incriminar os dependentes, pois estão sofrendo", diz. "Logo entenderemos que não são diferentes de nós. Quando os punimos, os incriminamos mais, e então aumentamos seu desejo de escapar da dor, o que faz com que seu vício aumente."


Para Maté, sentir-se vazio por dentro é a coisa mais antiga da espécie humana. "A necessidade de ser preenchido pelo exterior é inerente à nossa espécie. Álcool, jogos, compras, internet, videogames, sexo... qualquer coisa é uma justificativa para preencher este vazio", afirma. Segundo Maté, no nível biológico, muitas dependências se equivalem: os mesmos mecanismos cerebrais que disparam a dependência em cocaína acionam a dependência em internet. "É por isso que você não tem de combater a droga em si, e sim a fonte primordial dessa ânsia de preencher o vazio. Do que você sente falta? De onde vem esse vazio? Por que você está desconectado de sua natureza verdadeira? Como você pode se ajudar a se conectar de novo? Não importa qual é a droga, qual é o comportamento vicioso: estas são as perguntas que devem ser feitas", sugere.


Questão central no livro, e que muito nos interessa, tendo em vista lei em votação no Congresso, é a da internação compulsória. Maté é categórico: não funciona. "Assim que você força as pessoas a serem tratadas, elas resistem - é algo natural, automático, nos seres humanos. Há maneiras melhores de tratar. Se você falar com as pessoas de maneira compassiva, aceitando-as como são, entendendo seu sofrimento, vão abrir suas portas de cura e não resistirão ao tratamento. O governo gastaria menos se convencesse as pessoas a se tratar, em vez de forçá-las ao tratamento; teria melhores resultados", diz.


Maté vem enfrentando resistências ao querer adotar um tratamento inovador, porém pouco difundido e ainda polêmico: o uso terapêutico e controlado da ayahuasca. A substância, obtida pela combinação entre uma folha e um cipó, é usada há séculos por tribos da Amazônia. No século 20, ganhou notoriedade ao se tornar essencial a religiões surgidas na selva brasileira, como o Santo Daime. No Brasil, o uso ritualístico da ayahuasca é liberado por lei. No Canadá e nos eua não, e Maté recebeu críticas por defender seu uso no tratamento de dependentes em drogas pesadas. O médico conseguiu fazer este tratamento experimental junto a aborígenes canadenses, dependentes de metanfetamina - e afirma ter tido resultados surpreendentes. Segundo ele, o tratamento com ayahuasca é diferente da política de redução de danos, em que o dependente troca uma droga ilegal por outra mais leve, legal, fornecida pelo Estado, e assim evita compartilhar agulhas e cometer crimes. Com esta política, você não trata diretamente do problema do vício; apenas minimiza os efeitos , e por isso pode ficar dependente da segunda substância. "Já com a ayahuasca, você não está trocando uma substância por outra; está dizendo 'essa planta vai te dar certos insights e experiência que irão ajudá-lo a compreender você mesmo, a amar você mesmo, e você não precisará usar mais drogas'", analisa.


Se alguém chega deprimido ao consultório de um psiquiatra, ganha um antidepressivo; vai para casa e toma aquilo todo dia. Não é assim com a ayahuasca, diz Maté. "Você bebe o chá talvez uma ou duas vezes na sua vida, ou uma vez por mês, no máximo uma vez por semana: a experiência é tão intensa que torna impossível causar dependência. A ayahuasca não usará você como as outras drogas o usam - e sim ensinará você como lidar com as outras dependências. Não é substância para provar sozinho: mas ingerida com um guia, um apoio, em condições específicas, esta planta não causará mal. Vi muita gente abandonar as drogas após o tratamento com a ayahuasca. Porém, precisamos de apoio legal para aprofundarmos as pesquisas", afirma Maté.


Por outro lado, é possível criar dependência nos rituais que cercam a ayahuasca, para preencher o vazio ? "O mesmo pode acontecer com os encontros do Alcoólatras Anônimos", assente o médico. "Falar sobre você nesses encontros também pode ser viciante. Mas te pergunto: é melhor encher a cara todo dia ou ficar dependente do aa? Se uma pessoa criar dependência do ritual que cerca a ayahuasca, precisamos ver como está sua vida - se ela está destruindo seu corpo, suas finanças, se está vivendo na rua, se perdeu sua família. Não é o que acontece, em todos os casos que eu conheço", explica.


O terapeuta também deve ser alguém que teve um problema com drogas? Qual a relação pessoal de Maté com a dependência? "Nunca fui dependente em nenhuma substância", afirma. "Tive medo de gostar de cocaína, por exemplo. Mas fui dependente em comportamentos como trabalho e consumo. Era dependente em comprar discos de música clássica... algo que era muito precioso na minha infância pobre", confessa. "Quando falo sobre meu vício em compras com pacientes que usam heroína, eles me entendem totalmente. É importante que terapeutas olhem para si mesmos e entendam que não são diferentes de seus pacientes", diz.


A rotina deste setentão que aparenta 20 anos a menos, apesar do olhar melancólico, é fazer um trabalho espiritual todo dia - por meio da meditação, da leitura de poesia ou de algum livro religioso -, além de fazer natação e bicicleta. Em sua cabeceira estão The End of Your World, do pensador zen californiano Adyashanti, romances de Isaac Bashevis Singer, a biografia de Sigmund Freud, e, motivado pela recente perda de um cão, Mystical Dogs, de Jean Houston, que sugere que animais podem ser guias espirituais para os humanos. Seu próximo livro se chamará Toxic Culture - e trata da dependência em nível político, ecológico e social. "Não estamos só destruindo o meio ambiente com nosso vício em riqueza e poder - não só do jeito óbvio que isso pode parecer, como levar alimentos de má qualidade às pessoas. Mas também estamos isolando as pessoas umas das outras; a sociedade produz muitas doenças, a despeito de nossa riqueza contemporânea", diz o médico.


http://vidasimples.abril.com.br/temas/vazio-vicio-777315.shtml

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