by mairakubik
Em 19 de março 1964, as mulheres foram protagonistas da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, dias antes do golpe que depôs o presidente João Goulart e mergulhou o Brasil na sua longa ditadura civil-militar.
Em sua maioria, elas eram oriundas das classes médias e lançaram-se às ruas para responder ao apelo de setores conservadores, que lhes solicitavam assumir o papel de “donas-de-casa e mães de família”, salvando, assim, a pátria do comunismo. A consequência foi o apoio político-emocional ao golpe.
“No geral”, apontam as pesquisadoras Santana, Freire e Costa, “elas trabalhavam organizadas em pequenos grupos, fazendo reuniões, disseminando sua ideologia, divulgando suas tarefas e convocando especialmente outras mulheres através de programas de rádio, escrevendo e enviando telegramas, cartas e panfletos exaltando e defendendo valores e crenças cristãs e alertando contra a ameaça comunista. A imagem simbólica criada para o Comunismo identificava-o, não como um sistema político-econômico, mas como uma doutrina vinculada à destruição dos valores cristãos, da família e da propriedade. Esse discurso anti-comunista encontrou eco na classe média, que, insegura, via a possibilidade da perda de suas propriedades e dos valores burgueses já introjetados.”
Agora, às vésperas da celebração de 50 anos do golpe, há quem queira reeditar a Marcha. E o que está em questão obviamente não é apenas uma efeméride. Seus organizadores têm pautas bastante atuais: pensam em construir um país “ficha limpa” e livre de corrupção e, para isso, pedem a intervenção dos militares. Junto com aquela senhora amiga do cineasta rico “pra caralho” que discutiu com o Batman no Leblon, eles também acreditam que esteja em curso uma revolução de esquerda — embora esse termo tenha sofrido uma grande mutação desde 1964.
Outros slogans são o “direito à vida desde a concepção”, o “direito à família” e “à liberdade religiosa”, bastante semelhantes ao utilizados por aqueles que acreditam que também estejamos a um passo de uma “ditadura gay”, apoiada pelas “feminazis”. A imagem que convoca tal mobilização também é simbólica: traz a bandeira do Brasil ao fundo e, à frente, uma mulher, um homem e uma criança obviamente brancos. O homem está segurando a bíblia e, assim sendo, é o líder do grupo. E a mulher, como em 1964, é novamente convocada a assumir seu papel “natural” de mãe e esposa.
Dizem-se ameaçados por elxs, xs comunistas, feministas, movimento LGBT*. “Querem acabar com o nosso modo de vida e temos que reagir”. “Estamos vivendo a ditadura da minoria sobre a maioria”, clamam. O que está por trás é óbvio: a manutenção de privilégios de quem não quer ceder nada àqueles que estão posicionados hierarquicamente abaixo na sociedade.
Assim, a qualquer movimento de abertura da sociedade, como uma discussão pela extensão de direitos — por exemplo, do casamento homossexual ou do aborto —, respondem com o seu fechamento. O mesmo vale para o enfrentamento à corrupção: no lugar de repensarmos a democracia brasileira, escolhem negá-la e reivindicam a saída autoritária.
Ao contrário do que afirma seu discurso, querem restringir toda possibilidade efetiva de transformação da sociedade. O mesmo vale para os que organizam milícias contra indígenas no Mato Grosso do Sul. Ou que felicitam-se pelo governo federal não ter distribuídos mais terras e gritam contra as cotas para negrxs no ensino e no funcionalismo públicos. Ou acham que os garis cariocas não tinham motivos para entrarem em greve e que as vítimas de violência sexual não devem receber a pílula do dia seguinte. E que defendem em rede nacional de televisão que pessoas sejam linchadas em praça pública.
A Marcha em si pode ser um evento bastante limitado, mas ela representa o pensamento de uma parcela significativa da sociedade brasileira. Ao nacionalismo, junta-se o discurso odioso da supremacia branca, hetero, cis, masculina e burguesa, instrumentalizado por certas igrejas.
O alento é que há resistências. Uma delas, também em formato de Marcha, dessa vez antifascista, sairá às 15h30 do próximo sábado, 22/03, da Praça da Sé, em São Paulo. Contra o autoritarismo, a liberdade. O horizonte utópico permanece aberto, a despeito de propagandas contrárias.
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