Por Charô Nunes
Hoje é o Dia mundial do consumidor, aquele que é definido pelo ato de pagar por determinado produto ou serviço. Na teoria é como se a mão que recebe fosse cega, desde que a caixa registradora continue funcionando muito bem obrigada. Como se, dadas as mesmas condições de pressão e temperatura, a oferta de produtos e serviços fossem iguais para todos os grupos etnicorraciais. Apesar de essa ser a propaganda, sempre estivemos caminhando exatamente no sentido oposto. O racismo costuma preceder qualquer interesse que negros possamos suscitar a anunciantes, empresas e empreendimentos.
Tome como exemplo algo muito simples, o ato de ir e vir num shopping. Quando estamos falando de negros, está implícito que sejamos ostensivamente vigiados e perseguidos. O apartheid que muita gente “descobriu” com o rolezinho é coisa antiga e vai muito bem obrigada. Nesse sentido nossos algozes são bastante democráticos – são igualmente atingidos crianças, adultos e idosos negros. De praticamente todas as classes sociais, ao contrário do que diz aquela estorinha tão bonitinha que nos contam de que no Brasil existe apenas um problema social e nunca racial.
Na maioria do tempo claro, são usadas técnicas para que a coisa toda não dê muito na vista. Porém, algumas vezes acontece de a violência se tornar ainda mais evidente. Acontece de o problema se dar pela omissão. Um consumidor branco provavelmente será atendido primeiro e com mais rapidez, agilidade e boa vontade. Outras tantas, somos diligentemente acompanhados por seguranças. É algo a que faz parte do cotidiano de consumidores negros, tanto que muitos de nós nem precisamos levantar o olhar para saber que está acontecendo.
Por isso não estranhei que dois homens de pele branca, vestidos de preto e com aparelho de escuta atrás de mim. O fato é que estou habituada a ser entendida como uma potencial suspeita, mais ainda quando estamos falando de observar a vitrine de uma joalheria. No entanto, dessa vez o olhar sanguinário era destinado a dois garotos negros que conversavam sobre um par de alianças e pareciam completamente alheios aquilo que se passava ao seu redor. Ou pior, talvez também tenham se acostumado a serem seguidos, vigiados, literalmente caçados nos espaços de consumo como um shopping.
Foi quando pude escutar a palavra “polícia” e algo como “levar”. A essa altura da estória, decidi fazer com aqueles homens exatamente aquilo que sempre fazem conosco: vigiar. Foi quando um deles saiu. Talvez porque tivesse algo de muito urgente a fazer, talvez porque a minha “vigilância” surtiu algum efeito. Só que o circo de horror havia apenas começado. O segurança que havia permanecido no local fez questão de seguir os dois adolescentes enquanto iam embora. Agia sem fazer o menor esforço para não ser notado, impune e à luz do dia sem que nada fosse feito. Como se todos ali permitissem ou estivessem ocupados demais para sequer notar.
Quando viu que realmente tinham ido embora, a tarefa estava completa. Deu meia volta e finalmente ficamos de frente um para ou outro. Indagado sobre o que havia feito, respondeu que os meninos estavam ali há algum tempo fazendo algazarra. E que aquele espaço não era para isso. Se eu quisesse reclamar, que me dirigisse até os responsáveis. A mensagem foi como o desfalecer de mil esperanças – “não adianta reclamar, eu estava apenas fazendo o meu trabalho, fazendo aquilo que me mandaram fazer”.
Naquele momento e mais uma vez, eu recebia o mesmo tratamento dado aqueles dois adolescentes. Primeiro como mulher negra, agora como consumidora. Minha demanda era completamente desimportante. Minha opinião não importava de forma alguma, muito menos minha indignação. Esse é o preço imposto a todos que se desviam do que marcas, mercados e vendedores reconhecem como sendo alguém desejável ou aquilo que já se é, alguém que efetivamente está pagando por um serviço ou produto.
Obviamente, não estou aqui para defender a inclusão de negras e negros por meio do capitalismo. Com ou sem dinheiro na mão, ainda precisamos lutar para sermos reconhecidos como gente. Mais que isso, nossa humanidade jamais deve ser atrelada ao tamanho da quantidade de grana na conta bancária. Esse é um detalhe que pode mudar num piscar de olhos e definitivamente não contempla a todos, de propósito. Basta olhar para os lados para notar o quão frágil é colocar os direitos humanos nesse paneiro. A briga precisa ser outra. sem dúvida.
Por outro lado, não posso fechar os olhos para o poder que o dinheiro tem. Porque esse é o único recado que o mercado entende. Por isso meu pedido a você consumidor negro é direto. Antes de comprar pense que o desrespeito por aqueles meninos é o mesmo vivido por todos nós consumidores negros. Sim, nossa batalha também é como aquela de todos os demais consumidores – queremos produtos de boa qualidade, bom atendimento, transparência, ética, sustentabilidade. Mas precisamos ter em mente que estamos lutando por muito mais que isso.
Que estamos cansados de sermos preteridos em função da presença de um consumidor branco, por não apresentarmos a aparência “correta”, por não estarmos vestidos “adequadamente”. De sermos perseguidos, violentados simbólica e concretamente também no âmbito do consumo. É inaceitável que as nossas reclamações sejam respondidas com desculpas esfarrapadas, com o argumento de que nós não estamos entendendo. Que anúncios racistas não passaram de um mal entendido. Que o desfile não foi racista, nem o reclame, nem a novela. Porque sim, nós estamos e entendendo.
E também estamos vigiando.
Nenhum comentário:
Postar um comentário