Temos testemunhado a desesperadora situação de milhares de seres humanos que se veem obrigados a abandonar seus lares e partir em busca da própria sobrevivência.
Ponderar sobre essa questão nos leva a considerar – ao menos – dois pontos de vista, ou seja, tanto pela ótica dos que clamam por amparo, quanto sob o prisma daqueles que se sentem ameaçados pela invasão dos “kxenós” (estranho, estrangeiro).
Não menos relevante é considerar dois princípios naturais constitutivos do homem: a agressividade e a compaixão. Vamos à primeira delas, com o pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939).
Em sua obra “O mal-estar na civilização”, Freud esclarece que a beleza, a limpeza e a ordem ocupam posição especial entre as exigências da civilização.
Repudiamos tudo o que é feio, sujo ou desordenado porque tememos essas características em nós mesmos, daí a rejeição (mesmo que inconsciente) com os quais não nos identificamos.
Um dos atributos da civilização é o empenho na regulamentação das relações sociais, ou seja, para todo os tipos de relações há leis, regras, acordos e códigos afins.
Sem isso, os relacionamentos ficariam sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo, o que equivale a dizer que o mais forte (ou mais rico, mais bonito, mais inteligente, etc), decidiria a respeito dos demais, impondo sua vontade.
A vida em comum só se torna possível quando reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e permanece unida contra todos os indivíduos isolados: “O poder dessa comunidade é então estabelecido como ‘direito’, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’”, diz ele.
A substituição do poder de um pelo poder de todos, constitui o passo decisivo da civilização. Troca-se um pouco de liberdade por outro tanto de segurança. Esse é o pacto.
No submeter-se aos ditames assentados pela maioria jaz a essência da civilização. Mas, enquanto que, por um lado, os membros da comunidade restringem suas possibilidades de satisfação, por outro, cada indivíduo desconhece ou se rebela a tais restrições: “A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo”.
Subsequentemente, o curso seguinte no processo do desenvolvimento cultural tende a ampliar-se, no sentido de tornar a lei não mais somente expressão da vontade de uma comunidade (país, grupo ou ‘tribo’, como dizemos hoje em dia), mas de tornar-se ela mesma também um oponente violento frente a outras comunidades.
É por considerarmos que o desenvolvimento da civilização impõe restrições à liberdade e que a justiça cumpra a exigência de que ninguém fuja ao cumprimento de tais restrições, que o desejo de liberdade que se faz sentir numa comunidade humana pode ser sua revolta contra alguma outra injustiça existente numa outra comunidade.
Progredir enquanto civilização é focar nosso impulso de liberdade (agora enquanto comunidade) para o bem-estar de todos os membros, nos empenhando por justiça.
A disposição para o amor pela humanidade (denominada por Freud de “afeição inibida em sua finalidade”) representa o ponto mais alto que o homem pode alcançar. Nesse sentido, o autor nos recorda que São Francisco de Assis.
Mas, sobre esse “amor universal” Freud apresentará duas objeções. Para ele, um amor que não discrimina é privado uma parte de seu próprio valor, por fazer uma injustiça a seu objeto de “amor” (quem ama todo mundo não ama ninguém) e, sua segunda objeção está na afirmação de que nem todos são dignos de amor.
Uma das exigências da sociedade civilizada, diz ele, está no imperativo ideal que o cristianismo apresenta como sua reivindicação mais gloriosa, a saber: “Amar o próximo como a si próprio”.
Essa exigência, prossegue, não deixa de causar perplexidade: “Por que deveremos agir desse modo? Como isso pode ser possível?”.
Sendo nosso amor, algo valioso, devemos refletir sobre quem o merece. “Amar o próximo como a si próprio” nos impõe deveres que para cumpri-los devemos estar preparados e dispostos a realizar sacrifícios: “Se amo uma pessoa, ela tem de merecer meu amor de alguma maneira. Ela merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim (...), que eu me possa amar nela; (…) se for de tal modo mais perfeita do que eu, que eu possa amar meu ideal de meu próprio eu”.
Mas se essa pessoa for um estranho e não nos atrair por seus valores e virtudes será muito difícil amá-la.
Quando amamos alguém estamos valorizando essa pessoa, num sinal claro de preferência. É uma injustiça para com os quais amamos colocar um estranho no mesmo patamar de importância.
Se devo amar meu semelhante com aquele amor universal, como também amo os animais, por exemplo, tratar-se-á de uma pequena parte. “Qual é o sentido de um preceito enunciado com tanta solenidade, se seu cumprimento não pode ser recomendado como razoável?”, indaga Freud.
E relata outras dificuldades: “Esse estranho é, em geral, indigno de meu amor; (..) ele possui mais direito a minha hostilidade e, até mesmo, a meu ódio. Não parece apresentar o mais leve traço de amor por mim nem demonstra consideração para comigo. Se disso ele puder auferir uma vantagem qualquer, não hesitará em me prejudicar (…) não se importará em me insultar, me caluniar e me mostrar a superioridade de seu poder (...).”.
Recebendo desse estranho, demonstrações de tolerância e respeito, Freud diz que estaria pronto a tratá-lo com toda consideração. Por isso, diz que se o imponente mandamento dissesse “Ama a teu próximo como este te ama”, ele não teria objeções.
E traz à luz um outro mandamento que diz incompreensível: “Ama os teus inimigos”. E brinca: “Acho que agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo: ‘É precisamente porque teu próximo não é digno de amor, mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo’. Compreendo então que se trata de um caso semelhante ao do Credo quia absurdum” (creio porque é absurdo).
É provável, afirma, que seu semelhante rejeite a prescrição de que me ame como a si mesmo, pelas mesmas razões.
Considerando que os comportamentos apresentam diferenças que a ética classifica como sendo “bons” ou “maus”, ao seguirmos o preceito acima, obedecendo às elevadas exigências éticas, incentivaremos o ser mau, acarretando prejuízos aos objetivos da civilização.
Não somos pacíficos e só nos defendemos se atacados, mas detemos uma poderosa cota de agressividade.
Nosso próximo é alguém que nos tenta a satisfazer sobre ele a nossa agressividade, a explorar seu trabalho, utilizá-lo sexualmente, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e até mesmo matá-lo: “Homo homini lupus” (o homem é o lobo do homem).
Em questões nevrálgicas que dizem respeito à humanidade, não há como tirar coelhos da cartola. Se pensarmos, talvez surja uma pomba.
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