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domingo, 6 de dezembro de 2015

O terror contra o desejo

O Estado Islâmico não abomina o capitalismo. Ele abomina a tolerância e os direitos das mulheres

EUGÊNIO BUCCI
04/12/2015

Os atentados terroristas em Paris têm um quê de crime passional. Esse aspecto passou quase sem ser notado, quase sem registros, talvez por ser a face mais sutil de uma atrocidade sem nenhuma sutileza, mas que ninguém duvide: os terroristas de Paris queriam matar o desejo de quem não os ama.

Outros aspectos da tragédia foram devidamente analisados na imprensa. Como ato de guerra infame, a carnificina de 13 de novembro foi repudiada sob quase todos os ângulos. Ficou patente a legitimidade da reação do Estado francês que, dois dias depois, intensificou os ataques militares contra as instalações do Estado Islâmico em território sírio. Análises históricas recuperaram a gênese da organização terrorista. O tabuleiro das relações internacionais foi destrinchado em debates bem informados que desvelaram nexos entre governos, milícias e seitas, além de apontar o papel da inteligência e da diplomacia na superação de um quadro alarmante. Está mais do que demonstrado que não há como nem por onde justificar o comportamento e a motivação dos criminosos. Dizer que eles “combatem o capitalismo” é uma piada de mau gosto e um atestado de indigência intelectual.

Já está mais do que na hora de parar de uma vez com esse muxoxo ideológico. O Estado Islâmico não combate o capitalismo coisa nenhuma. Ao contrário, ele se beneficia do capitalismo selvagem e faz negócios com a escória do mercado clandestino de armas. O que o Estado Islâmico abomina não é o capitalismo. Ele abomina a renascença, o iluminismo, a tolerância religiosa e os direitos das mulheres. No fim da linha (onde se encontra), desfere seus golpes covardes (isso mesmo, covardes, pois não há coragem no fanatismo) contra a alegria, contra o humor (o Charlie Hebdo não foi uma vítima casual) e, agora, claramente, contra o desejo.

Os alvos dos atentados de 13 de novembro expressam terrivelmente o objeto do ódio dos fanáticos. Basta ver quem eles fuzilaram: jovens gozando a vida em locais de reunião festiva. As balas feriram de morte um espaço que só é possível nas sociedades democráticas: os bares abertos ao público, as casas de shows, os pontos de encontro onde cada um é dono de seu corpo. Que a cultura democrática produza teorias que criticam o entretenimento, seus fetiches e suas idolatrias mercadológicas, nada mais saudável e necessário. Que homicidas das trevas metralhem a juventude que se diverte, nada mais indizível. O Estado Islâmico não é contra o dinheiro, mas contra a democracia.

Isso mesmo: o ódio contra as pessoas que se divertem não é nada mais, nada menos, que o ódio contra a democracia. Não nos esqueçamos de que a democracia francesa nasceu (literalmente) nas tabernas e nos cafés do século XVIII, onde escritores, artistas e cidadãos livres se reuniam para se embriagar, dar risada e falar mal das autoridades. Foi dali que brotou a opinião pública. A conquista histórica que hoje se materializa nisso a que damos o nome de opinião pública teve seu princípio nos cafés e nos saraus literários. Sem uma boa mesa de bar, não haveria o regime de liberdade. Simples assim.

Se dependesse do moralismo furibundo do Estado Islâmico, as mesas de bar voariam pelos ares, os flertes seriam apedrejados e uma mulher capaz de gargalhar em público, de ombros descobertos, seria executada sumariamente. A imagem da mulher livre, senhora do próprio prazer, é incompatível com a mentalidade do terror. Os terroristas enlouquecem de ciúme. Tem uma repulsa visceral à liberdade física. Sem medo de errar, podemos dizer: eles têm uma repulsa de fundo sexual, muito mais do que de fundo político. Está na cara dos cadáveres que os fanáticos nunca leram Marx. Eles não fazem a menor ideia do que quer dizer a palavra capitalismo.

Não é por acaso que o aparato do Estado Islâmico se vale de garotos, pouco mais que adolescentes, que vivem ou viviam ao lado de suas vítimas e que falam ou falavam perfeitamente o francês, para matar a juventude desarmada em Paris. O Estado Islâmico oferece a seus cooptados um pretexto discursivo, um pretexto com tintas espetaculares, apenas isso. Fora isso, os assassinatos de Paris seguem o mesmo roteiro daqueles praticados por outros adolescentes que invadem suas escolas para atirar contra seus próprios colegas, como forma de lavar com sangue suas frustrações amorosas. Uns e outro atiram por ressentimento e acalentam da ilusão de que o estrelato póstumo vai redimi-los e vai libertá-los do anonimato para sempre.

A dor de Paris é a dor de uma mulher cuja tragédia ainda não acabou.

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