Dê Rana 25/Nov/2015
Como a estrutura dos cargos de comando das confederações e os valores de repasses de verbas públicas tornam o esporte um ponto de poder masculino
Como a estrutura dos cargos de comando das confederações e os valores de repasses de verbas públicas tornam o esporte um ponto de poder masculino
Não foi fácil para a seleção voltar da Copa América Masculina de Basquete, realizada na Cidade do México, em setembro de 2015, com apenas uma vitória na mala, eliminada na primeira fase. Mas o jogador estreante Ricardo Fischer, 1,85m, pelo menos pôde descansar as pernas. Estava na classe executiva de um voo da American Airlines com seus companheiros. Três semanas antes, Karina Jacob, 1,85m, retornara de Edmonton, no Canadá, com o quarto lugar da Copa América na bagagem. Mas ela, como as demais jogadoras da seleção feminina, teve de encarar os mais de 10 mil quilômetros da viagem em classe econômica mesmo.
A diferença no modelo da poltrona do avião em que sentam homens e mulheres do basquete é apenas o reflexo de uma política pública esportiva nacional que por regra privilegia o gênero masculino. Isso vale na análise de elementos tão distintos quanto a proporção de mulheres entre os contemplados pelo Bolsa Atleta (principal mecanismo de apoio ao esporte a partir da base) ou entre número de pessoas que ocupam cargos de poder no esporte. Essas estatísticas obviamente estão relacionadas.
No basquete, mulheres receberam do governo metade do valor destinado aos homens
“É uma questão que remete às origens do esporte olímpico contemporâneo, quando as mulheres foram impedidas de fazerem parte. Historicamente o esporte é visto como espaço de poder masculino, tanto do ponto de vista da prática esportiva, quanto da gestão”, opina Katia Rubio, professora da Escola de Educação Física da USP com 23 livros publicados nas áreas de psicologia do esporte e estudos olímpicos.
Toda a estrutura de poder que definiu as transferências voluntárias de recursos do governo federal ao basquete, priorizando a seleção masculina, é formada por homens. Começa no ministro do Esporte, George Hilton, e no presidente da Confederação Brasileira de Basketball, Carlos Nunes, passando pelos seus subordinados Vanderlei Mazzuchini (diretor de seleções), Marcos Jorge Lima (secretário-executivo do Ministério) e Ricardo Leyser (secretário de Esporte de Alto Rendimento). Também os técnicos das seleções masculina e feminina e todos os membros do primeiro escalão do ministério são homens.
Foi essa estrutura que definiu, em 28 de julho de 2015, a assinatura de um convênio que prevê o repasse de R$ 7,027 milhões do Ministério do Esporte à confederação de basquete. O dinheiro deverá ser obrigatoriamente utilizado na preparação da seleção masculina até os Jogos Olímpicos de 2016 – o que incluiu a Copa América e a compra das passagens em classe executiva por recomendação médica. Outros R$ 2,916 milhões já foram gastos pelo governo com a preparação deste time entre 2013 e 2014 – quase R$ 10 milhões no ciclo olímpico, portanto.
"Historicamente o esporte é visto como espaço de poder masculino, tanto do ponto de vista da prática esportiva quanto da gestão"
"Historicamente o esporte é visto como espaço de poder masculino, tanto do ponto de vista da prática esportiva quanto da gestão"
Para a seleção feminina, que disputou os mesmos torneios oficiais no período, a confederação propõe que os R$ 5,174 milhões disponibilizados por um convênio firmado em 2012 sejam utilizados na preparação até a Olimpíada – praticamente metade do valor destinado aos homens. O projeto aprovado previa que os recursos bancassem as temporadas 2013 e 2014 da seleção. Mas, só no ano passado, foram cancelados dois meses de treinos, para os quais já havia recursos públicos reservados.
“É diferente o tratamento. Não sei por que, mas existe uma discriminação. Você compara os locais de treinamento, é gritante a diferença. Você olha o conforto do masculino, no hotel que eles ficam, e os hotéis que colocam as meninas. É uma diferença brutal”, diz Laís Helena, 72 anos, sendo os últimos 33 como técnica do Santo André (SP), equipe mais longeva do País.
Essa diferença foi vista no translado para a Copa América. Estava previsto em convênio que a seleção feminina faria voos internacionais em classe executiva – também por recomendação médica. Mas só a pivô Kelly, medalhista olímpica, teve o privilégio. Para a Copa América, a seleção feminina fez um único amistoso. O time masculino disputou três torneios preparatórios, em Brasília (organizado com recursos do convênio), Buenos Aires e San Juan, em Porto Rico.
Em 2014, os curtos períodos de treinos da seleção feminina visando o Mundial foram em São José dos Campos, onde a estrutura é muito inferior à disponível na Hebraica, no Sírio ou no Paulistano, clubes da elite paulistana onde a equipe masculina trabalha. A escolha pelo Vale do Paraíba não foi por acaso. O técnico Zanon não queria se afastar do comando da equipe masculina da cidade, que jogava o Campeonato Paulista, e só dedicava as tardes à seleção; pela manhã, treinava os homens.
Isso acabou em agosto de 2015, quando Zanon deixou o comando do São José. E não foi por vontade própria. Reflexo da crise econômica, a prefeitura da cidade fez cortes no financiamento do time masculino, 10.º colocado no campeonato brasileiro do ano passado. A equipe feminina, 3.ª colocada na versão feminina do torneio, foi completamente desfeita, colocando na rua três jogadoras da seleção, incluindo Karina.
Preferência pela equipe masculina não se justifica pelos resultados: na seleção, homens não vão ao pódio há meio século. Mulheres estão lá desde 1992
A prioridade dada ao masculino não encontra respaldo em resultados também quando o assunto é seleção. Os homens ficaram fora dos Jogos Olímpicos entre 2000 e 2012 e não vão ao pódio há mais de meio século. As mulheres ganharam prata em 1996, bronze em 2000 e foram semifinalistas em 2004. Desde 1992, estão sempre lá.
“Você vê um boicote deliberado. O basquete feminino tem duas medalhas, o basquete masculino fica fora por três edições, mas nem isso faz os recursos chegarem para as mulheres. Não existe explicação técnica”, critica Katia Rubio.
Visando tentar fortalecer o basquete masculino, o Ministério do Esporte aprovou convênios que somam mais de R$ 17 milhões para a realização de cinco edições (2012 a 2016) da Liga de Desenvolvimento, para atletas de até 23 anos. No feminino, um projeto semelhante ainda “está em análise”, de acordo com o governo. A Confederação Brasileira de Basquete não quis comentar.
Há quatro maneiras de se financiar uma confederação esportiva. Duas delas preveem recursos privados: renúncia fiscal, com a Lei de Incentivo ao Esporte, e patrocínio (a confederação pode ter quantos patrocinadores conseguir, mas cada vez menos empresas estão investindo). Restam os recursos públicos, distribuídos com a Lei Agnelo-Piva, que destina o dinheiro das loterias federais, e com o Ministério do Esporte, que decide para onde repassará os valores nas transferências voluntárias. Algumas confederações recebem recursos sem distinção de gênero. Nas que separam os valores recebidos por mulheres e homens, porém, as seleções femininas saem perdendo:
EM ALGUNS CASOS, REPASSE DO GOVERNO A SELEÇÕES FEMININAS É ZERO#
EM ALGUNS CASOS, REPASSE DO GOVERNO A SELEÇÕES FEMININAS É ZERO#
Em nota, o Ministério do Esporte diz que “o Brasil vem conquistando gradativamente o aumento da participação feminina no esporte, com ações diretas do Governo Federal”, citando conquistas recentes no handebol, no judô, no vôlei e no vôlei de praia. Mas, nestas três últimas, o mecanismo de financiamento não distingue o repasse para homens e mulheres. O handebol teve uma série de outros fatores envolvidos, como patrocínios privados e montagem de uma seleção permanente na Áustria, com recursos do COB. Sobre as diferenças nos valores disponibilizados às seleções de basquete, citou que um convênio para o time feminino está “em fase de formalização”.
Os critérios para que as entidades recebam verbas estão em chamadas públicas. Na última delas, lançada em 2013, havia seis critérios subjetivos: relevância para o esporte de rendimento, relação com a preparação de atletas para os Jogos, abrangência das atividades propostas, clareza na apresentação e métodos de monitoramento e controle, relevância do legado do objeto proposto e capacidade técnica e operacional da entidade.
'Comissão técnica tem tom machista'#
'Comissão técnica tem tom machista'#
O hóquei sobre a gama correu sério risco de, pelo baixo nível técnico, ser a única modalidade coletiva da qual o Brasil não participaria nos Jogos do Rio. O vexame foi evitado depois que o Ministério do Esporte firmou um convênio de quase R$ 5 milhões com a Confederação Brasileira de Hóquei sobre Grama para que a seleção masculina passasse a treinar praticamente em tempo integral na Europa, meca deste esporte.
No ano passado, a confederação, o Comitê Olímpico do Brasil e o Ministério do Esporte decidiram concentrar recursos e esforços para o time masculino, que ainda tinha chance de disputar o Pan se houvesse uma combinação de resultados – o feminino estava eliminado do processo classificatório do Pan desde um torneio regional em 2011. Sem recursos, elas não puderam disputar nem mesmo a Liga Mundial, que poderia lhes permitir demonstrar evolução técnica e justificar o convite.
“A preferência pela equipe masculina é vista há muito tempo. O gênero masculino sempre foi tratado como uma equipe de verdade, e nós do feminino como um ‘bando’. Expressões sobre nossos corpos e discriminação sobre diferenças físicas entre o masculino e feminino eram sempre ouvidas, fora o julgamento de comportamento das atletas mulheres, diferente entre os gêneros, com um tom machista de uma comissão técnica onde quase toda sua totalidade são homens”, reclamaram 46 jogadoras brasileiras, em julho, em carta aberta enviada à imprensa e ao Ministério do Esporte.
No hóquei, jogadoras denunciam sexismo e afirmam que não têm a quem recorrer, já que a comissão técnica é formada só por homens
Por motivos distintos, os alvos das reclamações das jogadoras são pai e filho, “Os Rocha”. Sydney Rocha é presidente da CBHG desde a fundação da entidade, em 2003, mas as ordens seriam dadas pelo seu filho, Cláudio, hoje técnico da seleção masculina. Antes, ele treinou o time feminino.
Há inúmeras reclamações recentes sobre o tratamento sexista dos técnicos em relação às jogadoras. E as denúncias não são novidade. Em 2007, jogadores da seleção masculina e feminina da seleção fizeram greve antes dos Jogos Pan-Americanos do Rio pedindo a saída de Cláudio.
As reclamações contra tais posturas só poderiam ser levadas a outros homens, incluindo o pai de Cláudio. A CBHG afirmou, em julho, que rechaçava com “veemência” as acusações de sexismo. Questionada pelo Nexo, disse que Cláudio e seu pai não concederiam entrevistas e pediu que perguntas fossem formuladas por e-mail, mas a reportagem nunca recebeu respostas às perguntas enviadas.
“As atletas não têm ouvido. Não têm a quem recorrer. Elas não se sentem empoderadas o suficiente para brigar. Quando a (nadadora) Joanna (Maranhão) põe a boca no trombone, fica sozinha”, opina Katia Rubio.
“Eu não conseguia dizer: ‘ele colocou a mão no meu maiô’”
“Eu não conseguia dizer: ‘ele colocou a mão no meu maiô’”
Abusada sexualmente por um treinador na infância, Joanna é talvez a mais contestadora atleta brasileira. Por sua postura crítica à Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA), teve fechadas as portas a benefícios e bolsas. Aos 26 anos, viu a família endividada para sustentar sua bem sucedida carreira e decidiu “parar de dar murro em ponta de faca”. Voltou ao esporte no ano passado, aos 27, e vive o auge da forma. Agora, diz, usa seu técnico como interlocutor com a confederação e o governo.
Estrutura de poder é masculina e privilegia os homens#
Estrutura de poder é masculina e privilegia os homens#
Entre ministro, secretários, representantes de diversos segmentos, são 20 os atuais membros do Conselho Nacional do Esporte, colegiado de assessoria ao Ministro do Esporte no desenvolvimento de políticas em prol do desporto nacional. Só duas são mulheres.
O órgão, que congrega as diferentes esferas decisórias do esporte no País, é também um espelho do sistema em que as mulheres são uma minoria praticamente inexpressiva do ponto de vista quantitativo. Apenas a ginástica, a modalidade em que há mais preconceito sobre os homens praticantes, tem sua confederação nacional comandada por uma mulher, Luciene Resende.
Ao mesmo tempo, só cinco dos mais de 60 treinadores-chefes das seleções brasileiras de disciplinas olímpicas são mulheres, sendo que duas delas estão em modalidades obrigatoriamente femininas: ginástica rítmica e nado sincronizado. As demais estão no adestramento (hipismo), na ginástica de trampolim e judô. Em todos os esportes coletivos os técnicos das seleções femininas do Brasil são homens, auxiliados também por homens.
Mantendo as mulheres fora dos postos de comando nas equipes, os dirigentes homens garantem também que elas não obterão qualificação para galgar outros postos, o que faria com que elas passassem a disputar poder com eles.
As poucas mulheres que ocupam cargos de comando no esporte brasileiro são ex-atletas que traçaram caminho próprio em Organizações Não-Governamentais (ONGs), casos de Magic Paula (Passe de Mágica), Ana Moser (Atletas pelo Brasil) e Patrícia Medrado (Instituto Patrícia Medrado). Nos órgãos federais, a única mulher no alto escalão é Luiza Trajano, fundadora do Magazine Luiza, que recentemente foi nomeada presidente do Conselho Público Olímpico (CPO), em contestada escolha política da presidente Dilma Rousseff.
Investimentos não estão ligados à performance#
Investimentos não estão ligados à performance#
Não é segredo para ninguém que o Brasil vai disputar os Jogos Olímpicos do Rio-2016, em casa, com a meta de ficar no Top 10 pelo total de medalhas. E a principal referência para confiar no sucesso do plano é que, em 2013, o País ganhou 27 medalhas em provas olímpicas de Campeonatos Mundiais ou equivalentes. Destas, 13 foram obtidas por mulheres.
Quando se observa o número de atletas beneficiados pela Bolsa Pódio, oferecida ao governo a quem tem chances de pódio em 2016, entretanto, verifica-se que só 39% delas vão para as mulheres. A mesma discrepância de números é vista em outros projetos do governo, sempre com as mulheres prejudicadas de alguma forma. Em relação à concessão da Bolsa Atleta, 43,9% dos contemplados em modalidades olímpicas são mulheres, ainda que 47,5% da delegação brasileira em Londres-2012 tenha sido composta por elas.
A Teoria do Treinamento, estudada na Educação Física, mostra que, em um momento em que o Brasil busca resultados em curto prazo, pensando no quadro de medalhas dos Jogos de 2016, o mais pertinente seria investir no esporte feminino, uma vez que são elas que têm a maior margem de evolução.
Segundo esta teoria, quando se inicia o treinamento, o desempenho de uma equipe evolui positivamente de maneira rápida. Depois, há a etapa de estabilização, em que qualquer ganho é mais difícil. Como a mulheres começaram mais tarde em várias modalidades, esse período inicial coincidiria com o período de melhor desempenho.
O atletismo brasileiro é a comprovação de que a regra da teoria vale também para o esporte de alto rendimento. As provas que tiveram entrada mais tardia no programa olímpico – todas femininas – foram as que resultaram em melhores colocações para o País no Mundial e nos Jogos Pan-Americanos:
Sem tradição, com medalhas
Sem tradição, com medalhas
- Salto com vara (Fabiana Murer ganhou a única medalha do Brasil em Pequim)
- Marcha atlética de 20km (Erica Sena foi sexta colocada, outro único Top10 do Brasil no feminino)
- Salto triplo (Keila Costa foi a outra única finalista no feminino)
- 3.000m com obstáculos (Juliana Gomes ganhou o único ouro do Brasil no Pan)
No handebol, a seleção feminina chegou à Olimpíada só em 2000, oito anos após os homens. Mesmo assim, elas já têm um título mundial, enquanto o time masculino nunca passou de um 13.º lugar. Um desempenho tão melhor das mulheres só reitera a necessidade de uma maior racionalidade da política de investimento do governo no esporte feminino.
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