Célia Regina Ody Bernardes
Juíza Federal
21 de setembro de 2016
No último dia internacional dos direitos humanos (10/12/15), fui promovida a juíza federal titular em Tabatinga/AM, onde o Amazonas brasileiro se encontra com Colômbia e Peru. Saí, então, da 10ª vara federal, em Brasília/DF, especializada em lavagem de dinheiro, onde havia pouquíssimos réus – ou condenados – presos, para prestar jurisdição na vara federal responsável, dizia-se, por manter o maior número de pessoas presas em todo o Brasil. Cheguei em Tabatinga com vários sonhos e alguns objetivos bem concretos, o primeiro dos quais consistia em rever a situação desses tantos presos, imaginando o quão perigosos deviam ser para que fossem mantidos presos antes mesmo de condenados.
Estudando os processos, verifiquei que, em 99% dos casos, trata-se de “mulas” flagradas tentando trazer cocaína para o Brasil. Invariavelmente, são presas ao atravessar a fronteira, não conseguem levar a droga ao local indicado pelos traficantes que as contrataram e, como não integram organização criminosa alguma, são flagranteadas sem dinheiro algum, literalmente apenas com a roupa do corpo – e deixadas absolutamente indefesas.
“Quando eu vim para casa, meus filhos estavam largados, com problemas no Conselho Tutelar, respondendo [fazendo pirraça], eles eram agressivos. Hoje estão mais tranquilos, não têm problemas na escola, eles se acalmaram”. Raquel dos Santos Machado, presa por traficar uma pequena quantidade de drogas “para comprar fralda e leite”, saiu da cadeia dois dias antes do nascimento de sua filha mais nova.[1]
O que mais me perturbou foi perceber que as “mulas” são condenadas a penas muito leves, inclusive abaixo do mínimo legal[2], porquanto em regra são jovens com menos de 21 anos que confessam a prática do crime e não se dedicam a atividades criminosas nem integram organização criminosa. Sendo assim, o regime inicial de cumprimento das penas de prisão é, necessariamente, o aberto, mas, pasmem, as “mulas” já tinham ficado presas por meses antes de serem condenadas a penas de prisão que começariam a cumprir em regime aberto!
Pessoas presas preventivamente permanecem meses em situação equivalente ao regime fechado de cumprimento de pena, mas ao serem condenadas, o são ao regime inicial aberto, o que resulta em intolerável, inadmissível e bárbara utilização da prisão processual como antecipação de uma pena a que a pessoa jamais será condenada – nesse sentido, é urgente pensar as condições de possibilidade de um processo disciplinar no qual uma juíza se defende da acusação de cumprir sua obrigação de libertar pessoas cujo fundamento de prisão cautelar já findara com o cumprimento integral da pena fixada na sentença de primeiro grau, a exemplo do que está acontecendo com Kenarik Boujikian[3]. É necessário fazer cessar imediatamente essa prática judiciária que coloca em contradição a medida cautelar e o desfecho processual.
A primeira “mula” que vi diante de mim em uma audiência de instrução e julgamento foi uma jovem de 20 anos, mãe de uma menina de 3 anos, de quem cuida sozinha e é a principal provedora. Afirmou durante seu interrogatório que aceitou transportar a droga porque precisava do dinheiro para sustentar a si e a sua filha e não conseguia vislumbrar, naquele momento, outras oportunidades lícitas de trabalho, então sucumbiu à “facilidade” que lhe custou meses de cadeia e nenhum centavo a mais, porquanto foi presa antes que o aliciador lhe tivesse efetuado qualquer pagamento. Essa jovem me apresentou à mulher encarcerada no Brasil: pobre[4], jovem[5], com baixo grau de escolaridade[6], negra[7], solteira[8], mãe que cuida sozinha de seus filhos[9], provedora de sua família[10] e vítima de anterior violência doméstica[11].
Cerca de 58% das mulheres encarceradas são levadas ao inferno das prisões brasileiras, qualificadas como “estado de coisas inconstitucional”[12], em razão da acusação da prática de tráfico de drogas “não relacionado a grandes redes de organizações criminosas”[13], percentual muito diferente dos 23% de homens que são presos pelo mesmo tipo penal.
“Tive meu filho algemada pelos pés e pelas mãos, uma coisa assim, bem forte. E, aos três meses de vida, ele teve que ir embora. Aí, meu mundo desabou, você só fica com a parede”. Desirre Mendes Pinto, chef confeiteira, ex-usuária de drogas presa por tráfico.
Mas como explicar a criminalização feminina e seu encarceramento massivo por tráfico de drogas? Por que as mulheres são instrumentalizadas como mulas e, por isso, cada vez mais encarceradas? Essencial, aqui, proceder à análise das intersecções de gênero, raça e classe que atravessam o corpo da mulher, o que começa por compreender que a “estrutura do mercado de drogas ilícitas reproduz um padrão muito similar ao do mundo do trabalho legal”, no qual as mulheres ocupam as posições mais subalternas e vulneráveis.
Verifica-se que, na América Latina, a participação feminina no tráfico (mula ou microtraficante) assume “uma perspectiva laboral, na medida em que muitas mulheres inserem nas margens de sua sobrevivência tipos de trabalho considerados ilícitos”. Em um cenário neoliberal de aprofundamento da feminização da pobreza e de modificação da estrutura familiar, na qual se observa uma maior proporção de chefes femininas em lares pobres[14], o gênero aparece como categoria fundamental para entender o modo como as mulheres passam a integrar o mercado de drogas ilícitas e violar a lei penal reproduzindo o papel social e cultural a elas atribuídos. Com efeito, a mulher recorre a modos ilícitos de sobrevivência para cumprir exatamente os papeis de mãe e cuidadora de outros vulneráveis, a ela atribuídos cultural e socialmente, o que nos remete à perversa e constante intersecção de classe, gênero e raça que experimenta a mulher, sobretudo a mulher negra pobre.[15]
Demonstrada, assim, a “forte vinculação do sistema penal brasileiro a uma matriz histórica patriarcal”[16], apresenta-se “estratégico abordar o problema primeiramente sob o viés da redução do encarceramento feminino provisório”[17], para o que pode contribuir a condução eficaz da audiência de custódia. Trata-se de mecanismo importantíssimo para interromper o ciclo de expansão do aprisionamento provisório das mulheres que mantém o Estado brasileiro em permanente violação ao direito internacional dos direitos humanos, mas, para tanto, é necessário que os atores do sistema de justiça estejam conscientes das especificidades que o recorte de gênero (e raça e classe) traz à realização da audiência de custódia. A falta de educação para a questão de gênero faz com que os estigmas e as discriminações socialmente sofridas pelas mulheres sejam reforçados nas audiências de custódia, a exemplo de “cobranças do papel feminino diante dos filhos, da família” e, também, pela falta de atenção a aspectos específicos como hipóteses de gravidez, de filhos e dependentes. Durante monitoramento realizado pelo IDDD durante dez meses de realização de audiências de custódia, não houve uma única vez em que um juiz tenha perguntado se a presa estava grávida.[18]
Mas por qual razão estaríamos nós, juízes, violando as leis que juramos cumprir? Por que não cumprimos a Resolução do CNJ que nos obriga a averiguar, durante a audiência de custódia, para analisar o cabimento da concessão da liberdade provisória, as hipóteses de gravidez e de existência de filhos ou dependentes sob cuidados da pessoa presa em flagrante?[19]
Por que não concretizamos o Código de Processo Penal, que nos autoriza a substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando se trata de gestante ou de mulher com filhos?[20]
Por que nós, juízes, não consideramos a audiência de custódia como a oportunidade ideal para cumprirmos uma das mais importantes regras de Bangkok, segundo a qual, “ao aplicar medidas cautelares a uma mulher gestante ou a pessoa que seja fonte principal ou única de cuidado de uma criança, medidas não privativas de liberdade devem ser preferidas sempre que possível e apropriado”[21]?
Estaríamos nós, juízes, sendo instrumentalizados para perpetuar a colonização da penalidade pela prisão, para manter o sistema penal como dispositivo de dominação de classe, raça e gênero cuja função é gerir diferencialmente os ilegalismos[22], mediante seleção e gestão dos corpos indesejáveis e matáveis dessas mulheres politicamente irrelevantes[23] e indóceis, além de economicamente inúteis, que ousaram romper com as leis da sociedade e da família?
Não estamos aplicando, às mulheres, o Direito que juramos (fazer) cumprir. Estamos, os juízes e as juízas brasileiras, transgredindo a Lei. Até quando?
Célia Regina Ody Bernardes é Juíza Federal em Tabatinga-AM e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia), de cujo Conselho de Administração foi Secretária entre 2013 e 2014. Também integrou o Conselho Editorial da AJD, mas a atividade associativa que mais a apaixona é a militância no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. É Mestra em Filosofia pela UFPE (“Racismo de Estado: uma reflexão a partir da crítica da razão governamental de Michel Foucault”, Editora Juruá). Sonha com e luta por uma sociedade justa, fraterna e solidária, em que as pessoas experienciem a concretização de seus Direitos, mantendo no horizonte a divisa de Las Casas, “Todos os direitos para todos”, farol a iluminar a utopia de Victor Hugo, “Tudo para todos”.
Compõe a coluna Sororidade em Pauta, em conjunto com as magistradas Daniela Valle da Rocha Müller, Elinay Melo, Fernanda Orsomarzo, Gabriela Lenz de Lacerda, Juliana Castello Branco, Laura Rodrigues Benda, Patrícia Maeda, Renata Nóbrega e Sofia Lima Dutra.
Foto/imagem:Conectas e Instituto Trabalho, Terra e Cidadania (ITTC).
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