Não é novidade que o legislador fincou posição pela criminalização da interrupção da gravidez provocada ou consentida pela gestante, aplicando penas que variam de um até quatro anos[1], exceto quando o aborto for o único meio de salvar a vida da mulher, ou se a gravidez for resultante de estupro.
Mais recentemente, em 2012, por força da ADPF 54 de relatoria do ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, passou-se a permitir a interrupção da gravidez também em caso de feto anencefálico, conforme artigo anteriormente publicado na ConJur.
Na citada ADPF, ao se estabelecer a inviabilidade da vida extrauterina do feto acometido pela má formação neural, entendeu-se que a condição da anencefalia é incompatível com a própria vida, e sendo o aborto crime contra a vida, uma vez não havendo vida em potencial a ser protegida, o feto anencefálico seria um irrelevante patológico para o mundo do direito, portanto, não tutelado juridicamente.
Resulta deste raciocínio que a interrupção ou a manutenção da gestação, nestas condições, seria de interesse exclusivo e privado da gestante, não havendo interesse estatal no desfecho, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da criminalização de eventual conduta abortiva.
Na esteira da ADPF 54, abriu-se espaço para ADI 5.581, proposta pela Associação Nacional de Defensores Públicos, e que entre outros assuntos, cuida da possibilidade de abortamento em caso de contaminação da gestante pelo Zika vírus, independentemente de confirmada a microcefalia ou demais danos cerebrais no feto, que só seriam diagnosticáveis após a 21ª semana de gestação, dificultando a interrupção antecipada da gravidez.
O Procurador-geral da República, Rodrigo Janot, manifestou-se favoravelmente ao pleito, enquanto à Advocacia Geral da União (AGU) colocou-se contrária à possibilidade do aborto. A ADI 5.581 está pendente de julgamento, e a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, já manifestou sua intenção de colocá-la em pauta antes do fim deste ano.
Embora o atual panorama possa, num primeiro momento, parecer positivo com o estabelecimento de um pequeno avanço, o cenário revela-se ainda tacanho, com chances reais de inadmissível recrudescimento.
Isso porque, em pleno século XXI, a Suprema Corte brasileira ao debruçar-se sob a excepcionalidade do aborto diante da inviabilidade fetal (anencefalia), ou ao reabrir a discussão pautada em graves limitações congênitas (microcefalia e demais danos cerebrais), apenas abre parcas exceções que podem vir a confirmar a regra vigente: a criminalização.
Enquanto as possibilidades de interrupção da gravidez estiveram na esteira da excepcionalidade, pautando-se em enfermidades inerentes ao feto, estaremos dando espaço para a manutenção da violenta criminalização do aborto em caso de fetos plenamente viáveis, contribuindo para o atraso civilizatório que nos acomete frente à sintomática negativa de direitos à mulher.
É preciso enfrentar a questão do aborto em seu âmago, em seu núcleo, reavivando a discussão sobre o direito da mulher em interromper a gravidez de qualquer feto que seja, inclusive daquele potencialmente viável, perfeito, livre de enfermidades. A discussão motivada pela inviabilidade fetal, por mais humana e sensível que seja, é acessória e potencialmente danosa, na medida em que sua evolução pode reafirmar o status quo que mantém o poder decisório na mão do Estado, que agindo como dono do corpo da mulher, concede flexibilizações adstritas aos problemas congênitos do feto.
Mas é possível alterar a legislação federal e descriminalizar o aborto diante da nossa Constituição? A resposta é indubitavelmente sim, desde que a descriminalização imponha regulamentação clara. Na verdade, o que nos parece em patente desconformidade com o ordenamento constitucional vigente, é justamente o aborto criminalizado como regra.
Mas como funciona isso tudo?
A Constituição elenca uma séria de ‘valores’, ‘carta de direitos’, ‘princípios’, como a liberdade, a dignidade da pessoa humana, a vida, a segurança, a propriedade, etc., e inexiste qualquer hierarquia que coloque à vida acima dos demais valores constitucionalmente considerados. Destaca-se que nada para a Constituição é absoluto, e tudo deve ser sopesado de acordo com as necessidades advindas de cada situação específica, em um sistema de balanceamento entre escolhas constitucionais, que deságue na proporcionalidade e adequação da aplicação destes princípios.
A pretensa supremacia do valor vida, em detrimento de outros valores constitucionalmente relevantes, não advém de leitura ou interpretação da Constituição, e nem de escolhas jurídico-racionais demonstráveis. Advém, tão somente, da contaminação do ordenamento e das escolhas legislativas, com a indevida chancela estatal, por imperativos religiosos e morais.
O valor ‘vida’ é, inclusive, limitado pela própria Constituição, que prevê pena de morte em caso de guerra declarada. E se partirmos do pressuposto de que feto é dotado de potencialidade de vida extrauterina, portanto detentor de alguma proteção jurídica, temos que o próprio ordenamento criminal se incumbe de relativizar e limitar essa proteção.
Por exemplo, ao permitir expressamente aborto em caso de gravidez que coloque em risco a vida da gestante, estabelece-se que a vida da mãe tem mais valor que a potencial vida extrauterina do feto. Mais interessante, permite-se o aborto em caso de gravidez resultante de estupro, considerando-se a dignidade da mãe como valor maior que a vida potencial do feto. Curioso perceber, embora não haja conflito direto, que não se autoriza a pena de morte para o estuprador da mãe, reconhecendo-se, acertadamente, que a vida do estuprador está sujeita a maior tutela e proteção estatal do que a potencial vida do feto, que embora inocente e viável, será ceifada.
Nos exemplos dados, temos que a vida da mãe, a vida de um homem infrator, e até mesmo a dignidade da mãe, consubstanciada na sua honra, são todos valores considerados mais importantes, do ponto de vista do ordenamento, do que a potencial vida extrauterina do feto. Essa organicidade estabelecida entre os diferentes valores é absolutamente constitucional e saudável.
Ora, se a honra da mãe tem contornos mais importantes do que o valor dado ao potencial de vida do feto, com mais (ou pelo menos com igual) razão as questões de saúde pública, saúde da mulher, direitos reprodutivos, direito à sexualidade, direito ao próprio corpo, autodeterminação da mulher, e outros, dentro de balizas específicas, devem ser igualmente vistos como valores impositivos e válidos para participarem do balanceamento no contexto do abortamento, restando ao Estado, apenas, regulamentar tais balizas de forma racional e demonstrável.
Destaca-se que quando o Estado aceita sopesar a honra da mulher estuprada com a vida do feto viável, mas não aceita sopesar todos esses outros valores acima indicados e igualmente importantes, o Estado desnuda-se frente à sociedade e confessa que não vem se pautando pelo direito e nem pela organicidade do ordenamento jurídico, mas pauta-se em imperativo moral, e imperativos morais não devem prevalecer. A ordem jurídica impõe que todos os valores constitucionais em conflito sejam equanimemente testados, considerados e balanceados em caso de decisões difíceis.
Aparecem as pencas, e cada vez mais, mulheres apropriando-se de seus direitos constitucionalmente respaldados mas sistematicamente negados, e elas vêm se posicionando favoravelmente ao direito de escolha entre aborto e manutenção da gestação, mas é raro encontrar quem se posicione favoravelmente ao direito de abortar a qualquer tempo, por exemplo, durante o último mês de gestação.
Está aí a baliza estatal necessária. Está aí a única intervenção estatal legítima. Neste tocante, reconhece-se que o feto, com o desenvolver da gestação e à medida que sua viabilidade extrauterina torna-se latente, vai adquirindo, de forma gradual e contínua, precária tutela jurídica, aumentando o seu valor constitucional em relação aos direitos da mulher, cabendo ao Estado legislar sobre os prazos e limites razoáveis para a interrupção da gravidez, mas não sobre a própria possibilidade de interrupção. Até determinado momento, toda mulher e por qualquer motivo, inclusive autodeterminação, deveria poder interromper legalmente a gravidez.
No paradigmático caso Roe v. Wade, que resultou na descriminalização do aborto nos Estados Unidos, ainda na década de 70, o Estado usou como régua para limitar o direito da mulher ao aborto, o momento em que o feto se torna potencialmente viável fora do útero materno, sem ajuda de aparelhos, o que se dá por volta da 28ª semana de gestação. Pode não ser o melhor critério, mas sem dúvida é melhor que nenhum critério. E é isso que deveríamos estar discutindo, qual é o melhor critério demonstrável para delimitar tema tão sensível e fundamental, que considere e sopese as eventuais garantias do feto com as garantias da mulher.
Nesse sentido, a laicidade do Estado deve ser assegurada e exercida como dispositivo democrático, garantidor da efetivação do equilíbrio dos valores constitucionalmente considerados, barrando argumentações de ordem moral e de ordem religiosa, que tentam atribuir à vida uma supremacia que não encontra respaldo constitucional. Deve-se impor limites até mesmo às argumentações de ordem científicas que se pautarem em pressupostos morais. O que resta ao legislador é respeitar a Constituição, aceitar o direito, e regular os limites.
Questões atinentes à religiosidade e moralidade devem ser realocadas e relegadas à esfera privada de cada mulher, que considerará suas eventuais crenças e convicções pessoais, de forma íntima, na privacidade de seu lar, ao tomar a decisão de realizar ou não a interrupção da gravidez, arcando com as consequências físicas e psíquicas dessa escolha.
A criminalização do aborto como é hoje prevista, não apenas é uma farsa em sua eficácia diante da aplicabilidade seletiva, uma violência imposta à toda mulher diante do determinismo biológico, como também é evidentemente inconstitucional.
[1] Artigos 124 e 126 do Código Penal
Marina Toth é advogada criminalista sócia do escritório Toth Advogados Associados, mestre pela University of Michigan Law School, pós-graduada em US Law and Methodologies pela New York University/SCPS e pós-graduada em Teoria Geral da Infração pela Universidade de Coimbra/IBCCrim. É também membro do IBCCRIM e associada ao IDDD.
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