Não há campos de atuação onde as mulheres estejam livres de machismo, mas no mercado de tecnologia, o predomínio masculino é latente. Alguns dados ilustram o cenário: segundo o INEP, dos 7.339 formados em ciências da computação em 2010, apenas 1091 (14,8%) eram mulheres programadoras. A pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), indicou que dos mais de 580 mil profissionais de TI (Tecnologia da Informação) que atuam no Brasil, apenas 20% são do sexo feminino. Esse predomínio tende a ser naturalizado culturalmente, de forma que pensemos que homens sejam biologicamente mais aptos para programar e mulheres mais adequadas a relações interpessoais.
Nos últimos tempos, a disparidade de gênero dentro da tecnologia tem sido cada vez mais discutida. Com o crescimento da notoriedade de grupos de mulheres que militam por igualdade de gênero no setor, a noção de que é preciso incluir as mulheres para criar tecnologias e soluções mais inclusivas tem aumentado. Iniciativas como aMade With Code, do Google, têm reforçado que a participação das mulheres é o caminho para o desenvolvimento de um mundo mais democrático: enquanto mais da metade da população estiver excluída do setor, as tecnologias criadas não serão totalmente eficientes.
Ver que nós temos feito avanços positivos no debate sobre gênero e tecnologia me deixa super feliz. Apesar de uma considerável resistência, as mulheres têm conseguido pautar esse assunto em espaços importantes e muitas empresas têm visto a importância de promover a igualdade de gênero. Mas esse texto é sobre como ainda precisamos fazer uma discussão séria sobre diversidade racial no setor: além de predominantemente masculina, a tecnologia é um ambiente predominantemente branco. Inúmeros são os relatos de mulheres negras que são afetadas pela constante falta de colegas negras e negros no ambiente de trabalho e ao longo da vida acadêmica.
O problema começa na educação. O acesso ao ensino superior ainda é muito desigual: nos últimos anos, apesar do aumento nas taxas gerais de escolarização, a quantidade de mulheres e homens negros no ensino superior ainda é muito menor do que a quantidade de estudantes brancos (Dossiê Mulher Negra, IPEA, 2013). Ao mesmo tempo, nós, mulheres negras, sofremos uma série de ataques ao nosso intelecto ao longo da nossa trajetória educacional, o que acaba nos afastando da perspectiva de entrar na universidade e de trabalhar com áreas relacionadas às STEM (ciências, tecnologia, engenharias e matemática). E o resultado é palpável: em 2015, 74,2% dos ingressantes do curso de Computação da USP eram brancos e apenas 38 das 330 pessoas matriculadas eram mulheres (dados disponíveis no site da FUVEST).
A falta de estímulos, auxílios e recursos para se manter na universidade também tem um papel importante nesse cenário. Em um artigo publicado sobre a participação de negras e negros no sistema científico, de Isabel Tavares, Maria Lúcia de Santana Braga e Betina Stefanello Lima, apenas 25.6% dos bolsistas do CNPq se declararam pretos ou pardos. Essa porcentagem mostra que há uma falta de suporte para pesquisadores se manterem na vida acadêmica.
Há um tempo atrás, eu li este texto fantástico da Alona King sobre a vida sendo uma estudante de Ciências da Computação em uma universidade de elite estadunidense e sobre o frequente sentimento de não-pertencimento: “como uma mulher negra estudando Ciência da Computação em Stanford, eu odeio andar pelos corredores do prédio Gates Computer Science. Não é porque o interior do prédio me lembra a década de 70, apesar de ter sido construído nos anos 90. Não é por causa das memórias que eu tenho de uma aula que praticamente me fazia virar as noites no prédio. É porque, inevitavelmente, sempre que eu entro no prédio, me deparo com as quatro palavras que todo mundo que é minoria no mercado de TI escuta: “oi, você tá perdida?’”
Essa noção de que mulheres negras não podem se envolver com tecnologia é construída socialmente. Elementos culturais, como a série Silicon Valley, por exemplo, retratam o mundo da tecnologia como um grande festival de programadores homens (em sua maioria brancos), invisibilizando a existência de mulheres programadoras. A falta de representatividade acaba sendo mais um mecanismo para minar nossas oportunidades e nossas ambições. Assim, esse sentimento de não-pertencimento que a Alona teve na universidade se estende para o mercado de trabalho. Basta uma busca rápida para encontrar diversos textos que falam sobre como as empresas de tecnologia não contratam pessoas negras.
A Desiree Santos trabalha na ThoughtWorks e nesse podcast ela fala um pouco sobre a presença das mulheres negras nas empresas de tecnologia. Ao ser questionada sobre ter ou não enfrentado mais desafios no setor por ser negra, Desiree é categórica: “Totalmente. Por ser mulher, já existe esse paradigma, há todo um trabalho a mais que temos que fazer por conta dessa cultura [machista]”. Ela complementa que o fato de ser mulher e negra acaba agregando dois preconceitos “com os quais a gente tem que lutar a todo momento”. A Desiree também compartilha uma experiência com o racismo institucional: “eu fui atrás de uma vaga de estágio em uma empresa de tecnologia na Urca, no Rio de Janeiro. Quando cheguei lá, senti um olhar diferente… Quem é negro e está inserido nesse ambiente automaticamente percebe isso”.
A Stacy Brown-Philpot é uma mulher negra que recentemente foi nomeada a CEO do TaskRabbit (um app de organização de tarefas) – ela é uma das poucas a ocupar essa posição em empresas de tecnologia do Vale do Silício. De acordo com dados levantados pelo #ProjectDiane, de um número aproximado de 2200 startups americanas de tecnologia lideradas por mulheres, apenas 88 contam com mulheres negras CEOs.
A Stacy conta que houve diversas vezes em que ela foi a única negra no local de trabalho e que esse é um arranjo desafiador. Durante o tempo em que trabalhou no Google, Stacy notou que muitas das pessoas negras que eram contratadas acabavam desistindo da vaga por não encontrarem um ambiente acolhedor. Assim, ela acabou ajudando a fundar a Black Googler Network – uma rede de pessoas negras na empresa – e trabalhando com a Black Girls Code – uma organização que tem ajudado jovens negras a contemplarem carreiras na tecnologia. Aumentar a diversidade racial no setor é um foco intencional da Stacy: ela se sente mais confortável em um ambiente racialmente diverso e a maioria das pessoas também.
Acho que a boa notícia é que algumas empresas já começaram a perceber como é importante investir em diversidade racial. A empresa Slack recentemente foi nomeada a startup com o maior índice de crescimento. Durante a cerimônia de premiação, 4 engenheiras negras subiram ao palco para aceitar o prêmio. O discurso de uma delas, Kiné Camara, reforçava que era a diversidade racial da empresa um dos elementos cruciais para o sucesso.
Shola Oyedele é uma engenheira de software e se formou em Ciências da Computação e Estudos Africanos e Afro-Americanos na Stanford University. Nesta entrevista ela fala sobre como a diversidade é um investimento para as empresas e como o seu próprio sucesso e o sucesso de outras minorias e mulheres, dá retorno para as empresas.
Um passo importante na hora de incluir mais mulheres, e especialmente, mais mulheres negras na tecnologia é visibilizar o trabalho incrível que elas vêm realizando no setor. Retomando a nossa narrativa e mostrando que também podemos fazer parte desse universo, vamos desconstruindo pouco a pouco os estereótipos de carreira associados às mulheres negras. A lição que fica é que quando a oportunidade aparece, as mulheres negras se dão tão bem no setor quanto qualquer pessoa.
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