O moralismo e o machismo do Brasil em três longas no festival de Brasília que termina nesta terça
CAMILA MORAES
Brasilia
Como a mulher é vista em pleno século XXI? Se depender de três filmes que integram a edição deste ano do Festival de Brasília, a resposta é curta e imediata: mal. Seja nos centros do poder político, nas rodas de conversa ou nas ruas, ela aparece reiteradamente como submissa, fútil e objeto de violências pelas quais termina, muitas vezes, sendo responsabilizada. É um intrincado panorama que emerge de fora das telas do cinema – e é para isso que querem chamar a atenção os longas Sexo, pregações e política, Câmara de espelhos e Precisamos falar do assédio, todos feitos por mulheres e selecionados em mostras paralelas do festival que chega ao fim na próxima terça-feira, 27 de setembro.
A mulher criminalizada por recorrer ao aborto clandestino, representada no caso real de Jandira Magdalena dos Santos Cruz, que circulou na imprensa em 2014, é o tema abordado em Sexo, pregações e política, de Aude Chevalier-Beaumel e Michael Gimenez. O documentário, que integra a mostra A política no mundo e o mundo da política, investiga entre representantes do Congresso Brasileiro suas visões sobre a responsabilidade na morte da jovem de 27 anos que não resistiu às complicações de um aborto feito em más condições. Jandira terminou esquartejada e carbonizada pelos responsáveis por realizar o procedimento ilegal, desfecho que leva a dupla de diretores a questionar: “Quem matou Jandira?”.
Para deputados da bancada evangélica da Câmara de Deputados, como Marcos Feliciano e Jair Bolsonaro, a resposta é “ela mesma” ou “o Estado que não assume seu papel na conscientização de mulheres que acabam com vidas inocentes”. Falas agressivas como as deles quase não encontram contraponto no filme, com exceção da figura do deputado Jean Wyllys, que aparece para representar a leitura de que a mulher é dona de seu próprio corpo. Questionada pela falta de opiniões menos radicais, Aude, a diretora, explica que “havia outros que pensam como ele, mas não são muitos”. “Optamos por entrevistar Jean Wyllys, porque entre suas pautas está a causa LGBT e outras que encontram menor ressonância no Congresso, diante de uma maioria conservadora”.
Em Câmara de espelhos, o lugar da mulher na sociedade passa por diversas discussões – entre homens comuns, afastados do poder. Para dar forma a elas, a diretora pernambucana Dea Ferraz pensou numa câmara construída com paredes de madeira e ambientada como uma sala de estar. Publicou um anúncio no jornal, convidando homens de 18 a 80 anos que quisessem “ver suas opiniões na tela do cinema” e assim preencheu o espaço – que foi filmado enquanto a conversa acontecia livremente, como em uma mesa de bar. Surge, na dinâmica, um retrato espontâneo do machismo de cada dia: “mulher boa é mulher surda e muda”, “mulher cuida da casa e o homem sai para trabalhar”, “mulher bem-sucedida no trabalho deve deixar a autoridade fora de casa”.
Mais uma vez, há pouco ou nenhum contraste na tela. Um único participante da roda, um ator, foi escolhido pela equipe do filme para interferir na conversa com opiniões mais equilibradas. Segundo a diretora, que estudou jornalismo e se especializou em documentários na Escola de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, em Cuba, seu experimento “joga o universo masculino dentro de uma caixa e nos faz olhar para os discursos banais do dia a dia, desfilando a violência que caminha submersa”. O filme, rodado em Recife, é parte das Sessões Especiais do Festival de Brasília.
Uma violência de face mais crua aparece no último documentário da trinca, Precisamos falar do assédio, um projeto feito em parceria com a Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres de São Paulo. Aqui, a diretora paulistana Paula Sacchetta fez seu próprio experimento ao adaptar um estúdio de gravação a uma van que circulou por diferentes bairros das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. A missão, inspirada pela campanha #MeuPrimeiroAssédio, que tomou as redes sociais no final de 2015, aconteceu na Semana da Mulher, em março de 2016, para convidar mulheres a dar depoimentos sobre os assédios que sofreram ao longo da vida. Mulheres de várias idades, de adolescentes a uma senhora de 84 anos, contam histórias de violência emocional, verbal e física que, não raro, chegaram ao cume do estupro e de outras fortes agressões, para elas, impossíveis de apagar. Algumas optaram por usar máscaras, mas todas falaram imbuídas do “desejo de que o que aconteceu comigo não aconteça com nenhuma mulher mais”.
“Acho que ficou claro para todas que estamos nesse momento de nos perceber como mulheres. Passamos por muitas coisas só pelo fato de sermos mulheres, e isso nos fortalece para ter coragem de falar. Depois de fazer esse filme e de exibi-lo para as meninas que participaram dele, entendi o sentido mais profundo da palavra acolhimento, de ser solidárias e estar aí umas para as outras", conta a diretora, cujo trabalho já tem funções previstas em São Paulo, no Belas Artes e no circuito da SP Cine, além de exibições públicas pensadas para acontecer em várias cidades do país.
No total, foram 140 depoimentos coletados, sem qualquer tipo de interlocução. Os mais fortes entraram no filme, que, apesar de não variar na forma, resultou o registro mais sensível dos três ao relevar sem necessidade de mediação o que incomoda muito ver: as mulheres estão em clara desvantagem.
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