Obra que será lançada nesta sexta-feira resgata existência, há quase duzentos anos, de jornais feministas diversos e combativos — talvez as primeiras vozes públicas em luta pela emancipação
Por Inês Castilho
A literatura, a imprensa e a consciência feminista surgiram praticamente ao mesmo tempo no Brasil, nas primeiras décadas do século 19. Quem afirma é a pesquisadora de história e literatura feminina Constância Lima Duarte, da Universidade Federal de Minas Gerais, autora de uma fascinante cartografia de 143 publicações dirigidas ao público feminino nos anos 1800, de norte a sul do país. O dicionário ilustrado Imprensa feminina e feminista no Brasil no século XIX vem renovar a narrativa sobre o clamor das mulheres por direitos humanos – primeiramente à educação.
“Quando as primeiras mulheres tiveram acesso ao letramento, imediatamente se apoderaram da leitura, que por sua vez as levou à escrita e à crítica”, afirma Constância. “E independente de serem poetisas, ficcionistas, jornalistas ou professoras, a leitura lhes deu consciência do estatuto de exceção que ocupavam no universo de mulheres analfabetas, da condição subalterna a que o sexo estava submetido, e propiciou o surgimento de escritos reflexivos e engajados, tal a denúncia e o tom reivindicatório que muitos deles ainda hoje contêm.”
Uma verdadeira revisão da história de nossa imprensa. Assim como os filmes dirigidos por mulheres começaram a ser recuperados pela pesquisadora Heloísa Buarque de Hollanda no livro Quase Catálogo 1 – Realizadoras de cinema no Brasil (1930-1988), de 1989, o trabalho de Constância Lima Duarte traz à luz preciosidades até aqui quase desconhecidas. É o caso de O Corymbo (RS, 1884-1944), que apesar da longevidade inédita e grande contribuição à cultura brasileira e à história das mulheres é citado apenas como um dos “jornais de oposição, de combate” na História da Imprensa no Brasil, de Nelson Werneck Sodré.
As publicações refletiam a cultura do seu tempo, com as diferentes visões sobre o papel da mulher (branca e de elite, supostamente) na sociedade. Se algumas sentiram soprar os ventos trazidos com a corte portuguesa em 1808 e defendiam o direito das mulheres de frequentar escolas e espaços públicos, outras as queriam em “reclusão mourisca”, a falar apenas de filhos, moda e culinária. Os títulos tinham alcance surpreendente no território nacional, “pois esta imprensa tensionou a opinião pública não só no centro, como também nas periferias. Circulou no litoral e no interior, na metrópole e nas mais afastadas províncias”.
Concentraram-se nas capitais e particularmente no Rio de Janeiro (45), seguido do Recife (25), São Paulo (14), Salvador (9) e Fortaleza (4), além de outras cidades – 7 só em Minas, 4 na Bahia e no Rio Grande do Sul – e 3 no exterior. Receberam nomes de flores (Rosa, Tulipa, Lírio, Violeta), de adereços femininos (Grinalda, Brinco, Pérola), de pequenas aves e insetos (Beija-Flor, Borboleta); muitos Espelhos (das Belas, das Brasileiras), Jornais (das Moças, das Damas, das Famílias) e Recreios (da Mocidade, do Belo Sexo). A maioria com duração de dois a três anos, mas muitos com vida longa. Algumas, diz Constância, revelam um cuidado gráfico excepcional.
Antes que as mulheres se lançassem como protagonistas, homens falaram em seu nome. O primeiro periódico conhecido, O Espelho Diamantino, foi lançado em 1827 no Rio de Janeiro por um jornalista, Pierre Plancher. O segundo também, O Mentor das Brasileiras, produzido pelo professor José Alcebiades Carneiro em São João del-Rei, em 1829. Ambos defendiam “com surpreendente ênfase” o acesso das mulheres à educação e ao debate político e colocavam-se como seus guias. Em 1830 surgem o Manual das Brasileiras, em São Paulo, e O Despertar das Brasileiras, em Salvador, também criados por homens. Em 1831 surge no Recife O Espelho das Brasileiras, lançado pelo tipógrafo francês Emile de Bois Garin, em que Nísia Floresta (1810-1885), autora de Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, de 1932, iniciou-se como escritora – ela também objeto de estudo de Constância Lima Duarte.
As duas primeiras iniciativas protagonizadas por mulheres surgiram em Porto Alegre, em 1833, com a escritora Maria Josefa Barreto (1786-1837), com títulos originais e de certa atualidade: Belona Irada contra os Sectários de Momo e Idade d’Ouro. Também mereceram destaque, por terem sido escritos na primeira pessoa e possivelmente dirigidos por mulheres, no Rio de Janeiro, A Filha Única da Mulher do Simplício (1932) e A Mineira no Rio de Janeiro (1933).
Considerado o fundador do periodismo feminino brasileiro, surge em 1852 no Rio de Janeiro o Jornal das Senhoras, de Joana Paula Manso de Noronha (1819-1875). “Com o objetivo de ‘propagar a ilustração’ e cooperar ‘para o melhoramento social e a emancipação moral da mulher’, trazia a bandeira que muitos dos periódicos que se seguem também vão ostentar: a reivindicação por uma instrução mais consistente para as meninas”, sustenta a pesquisadora.
“Alimentado por fontes primárias raras ou de difícil acesso, este dicionário busca cumprir seu papel de mapa e guia norteador de novas pesquisas”, diz ela. “Vem, pois, preencher lacunas que persistem acerca da história da mulher brasileira na busca por seus direitos e na construção de sua identidade e de uma dicção literária própria”. O segundo volume já está a caminho, com mais de 300 periódicos que circularam entre 1900 e 1999.
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