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sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Raiva ajuda, mas não resolve

O que nos tira de situações emocionais insolúveis é aceitar, profundamente, que as coisas não são como gostaríamos que fossem

IVAN MARTINS
21/09/2016

Minha analista freudiana às vezes desce do pedestal e diz coisas inesperadas. Ontem, depois de saber que eu tinha ficado bravo com uma mulher que não me quis, ela soltou o clichê mais gasto das últimas décadas: “Sem raiva a gente não consegue se afastar de ninguém”.

Disse isso e silenciou, feito uma esfinge. Eu perguntei por que, exigi explicações, implorei que ela elaborasse o raciocínio e o transformasse em algo útil, mas não. Ela se agarrou ao mutismo psicanalítico e me deixou no divã da perplexidade.

Francamente, não acho que a raiva tenha tanta utilidade para dar fim a relações malsucedidas. Ela é efêmera demais. Não dura o tempo que a gente precisa para agir com firmeza.

Num dia, sentindo-se rejeitado, você vira um balde de ressentimento sobre a cabeça do outro. É capaz de dizer coisas horríveis. No dia seguinte, arrependido, telefona, pede desculpas e rasteja para consertar a situação. Quando a raiva passa, a gente está de novo vulnerável à atração do outro.

Claro, há o sujeito que agrediu a mulher e ela foi embora, furiosa e humilhada. Há o cara que descobriu que a namorada o estava enganando, e não conseguiu perdoá-la. Há gente que percebe que o parceiro está se aproveitando da relação, inclusive de forma material, e sente uma revolta profunda.

Erros graves costumam produzir sentimentos fortes e afastamentos definitivos. Seria esquisito se gente submetida à violência, à trapaça e à mentira fosse incapaz de detestar quem as maltrata.

Mas não é isso que acontece toda hora.

O crime mais grave que as pessoas cometem no cotidiano é não se apaixonar por nós como nós por elas. A ofensa mais intolerável que nos fazem é deixar de nos amar. O que nos enche de frustração é perceber que o outro não quer nos beijar, não quer transar conosco ou não quer manter a relação estável e apaixonada que gostaríamos de manter com ele.

Esse tipo de conflito ao mesmo tempo banal e essencial a raiva não resolve, porque lhe falta sinceridade e profundidade.

Posso dizer raivosamente a uma mulher que me rejeita que eu a acho fútil, que ela vive cercada por babacas, que ela, sendo rasa, escolhe homens por critérios vazios como renda, juventude e aparência – mas isso não muda o fato de que eu a desejo, e que se ela me escolhesse eu não veria nada de errado no caráter ou nas escolhas dela.

As críticas movidas apenas por desejo frustrado e vaidade ferida são facilmente perceptíveis. Muitas vezes a pessoa que está sendo criticada nem se dá ao trabalho de responder ou reagir. Percebe o dano que a sua rejeição causou, sente pena, e escolhe ouvir em silêncio o que o outro tem a dizer, numa espécie de penitência: quem mandou seduzir? Agora aguenta.

A raiva que se expressa dessa forma, como frustração e vontade de atrair a atenção do outro, provavelmente não leva a lugar nenhum.

O que a analista tentou me dizer – imagino - é que a raiva pode ser uma tentativa de se defender. Numa relação que causa dor, sentir raiva pode ser o primeiro passo para se proteger, se afastar e se reconstruir. Sentir raiva do outro é melhor do que ter pena de si mesmo.

Raiva ajuda - eu entendo - mas não resolve. Na minha experiência, o que leva uma pessoa para fora de situações emocionais insolúveis é um certo fatalismo. É entender que o desejo, por bonito que fosse, não irá se realizar. O que traz paz é a aceitação profunda da realidade. Ao contrário da raiva, que é instantânea, o processo de resignação é demorado, mas tem resultado duradouro. Quando a gente aceita o fim de alguma coisa, não há telefonema, mensagem ou conversa que nos faça sofrer de novo. Ao contrário da raiva, aceitação não passa.

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