Depois de dois anos de guerra no Iêmen e um boicote comercial de vizinhos que durou 18 meses, milhões de pessoas estão passando fome no país ─ alguns estão até morrendo por causa da escassez de comida. Enquanto isso, uma médica na cidade de Al Hudaydah está fazendo tudo o que pode para salvar vidas.
Em seus 20 anos como médica, Ashwaq Muharram nunca presenciou uma situação tão ruim.
"Eu tenho visto a mesma coisa que costumava ver na TV quando a fome tomou conta da Somália", diz ela. "Nunca pensei que um dia fosse ver isso no Iêmen", acrescentou.
Por anos, Ashwaq trabalhou para organizações de ajuda internacional, mas a maioria delas deixou o país quando a guerra começou, em março de 2015 ─ e aquelas que ficaram, reduziram bastante suas atividades.
Agora ela tem distribuído remédios e comida com dinheiro de seu próprio bolso, usando seu carro como uma clínica móvel.
A reportagem da BBC passou duas semanas com Ashwaq visitando regiões e vilas perto de Al Hudaydah e testemunhando cenas até então impensáveis no Iêmen.
Relato
Al Hudaydah, que é controlada por rebeldes houthis que tomaram o controle da maior parte do Iêmen em 2014, era até recentemente o ponto de entrada de 70% da comida importada que chegava ao país.
Agora, não só está sob boicote, como também tem sido alvo de ataques aéreos da coalizão liderada pela Arábia Saudita ─ o próprio porto, que era um resort turístico na praia, está completamente destruído.
As bombas e o boicote passaram a representar uma ameaça dupla aos pacientes de Ashwaq .
"Se você não morre pelo ataque aéreo, você pode morrer doente por falta de alimento", diz ela. "E não há forma mais triste de morrer do que de fome", acrescenta.
Com o carro carregado de remédios, ela dirigiu com a BBC até Beit al-Faqih, 100km a sudeste de Hudaydah.
Outrora próspera, a vila se sustentava com a venda de bananas e mangas ao exterior, mas as exportações cessaram e a maioria dos trabalhadores perdeu o emprego.
As frutas acabaram se tornando caras demais para qualquer pessoa que vive no Iêmen.
É nesse local que conhecemos uma mãe e seu filho, Adbulrahman. A criança tem intolerância à lactose e a doença vem afetando seu crescimento.
"Quantos anos ele tem?", pergunto. "18 meses", responde ela. "Ele já deveria estar andando e falando agora", lamenta. E, imediatamente, cai em lágrimas.
Abdulrahman precisa de um tipo especial de leite que não está disponível no Iêmen desde a destruição do porto de Hudaydah e o início do boicote.
Ashwaq diz à mãe que irá ajudá-la ─ antes de perceber que essa era uma promessa que talvez nem ela seria capaz de cumprir.
Ela sabe que o menino pode morrer sem o leite, mas também tem consciência de que será um desafio enorme encontrar o produto.
"Eu mesma já procurei por esse tipo de leite antes e realmente não há lugar que tenha", diz.
Sua própria família enfrentou problemas similares. Depois que a guerra começou, o marido ficou doente: contraiu uma infecção no coração e precisava urgentemente de remédio.
"Eu corri até o principal hospital cardíaco de Sanaa, mas como médica sabia o que eles estavam prestes a me dizer: que estavam sem estoque de remédio e que não poderiam fazer nada para ajudar", conta.
"Sou médica, meu marido estava morrendo na minha frente e não havia nada que pudesse fazer", acrescenta Ashwaq, em lágrimas.
O marido conseguiu ir embora para a Jordânia, levando os dois filhos do casal para viver em um local mais seguro. Eles já não vão mais para a escola.
"Estou cansada como médica, como mãe e como esposa", suspira.
Dirigindo de volta para Al Hudaydah, a reportagem avista pela janela um homem tomando banho ─ vestido ─ no meio da rua, enquanto crianças descalças correm ao redor dele. São iemenitas que fugiram para a cidade de áreas de conflito mais intenso.
"Os ricos agora são a classe média, a classe média é agora parte dos pobres e os pobres agora estão morrendo de fome", explica Ashwaq.
"Algumas dessas pessoas tinham uma vida como eu e você, e agora olhe para elas", diz, apontando para as pessoas na calçada. "Perderam tudo", conclui.
Na rua, uma mãe com três crianças conta que a família vivia em Haradh, perto da fronteira com a Arábia Saudita, ao norte do país. Eles passaram meses em um campo de refugiados com pouco acesso à comida ou a medicamentos, mas o local foi bombardeado. O marido dela morreu no ataque.
Os iemenitas estão presos em uma armadilha. Mais de 3 milhões de pessoas de uma população de 27 milhões tiveram que abandonar suas casas. Enquanto isso, todos os portos foram fechados pela coalizão saudita, o que impede qualquer pessoa de deixar o país.
Para piorar, muitos países que um dia receberam iemenitas sem pedir visto agora estão fechando as portas para eles.
Viajando com Ashwaq, de uma vila para outra, a reportagem encontrou diariamente crianças morrendo de fome.
Ao mesmo tempo, está ficando mais difícil para que elas consigam tratamento no país. Boa parte dos hospitais do Iêmen teve de fechar, seja por causa das bombas ou pela falta de medicamentos.
A ala infantil do hospital central de Al Hudaydah está tão lotada que há duas ou três crianças em cada leito.
Ali a BBC conheceu Shuaib, 4 anos. O avô dele tomou emprestado dinheiro de vizinhos para ir ao hospital, em busca de tratamento para a febre e diarreia do menino.
Mas escutou dos médicos que não havia nada que eles pudessem fazer. "Nenhum dos antibióticos que temos aqui tratam o tipo de bactéria que ele tem", disse o administrador do hospital.
O corpo de Shuaib vai ficando mais frio a cada minuto, e seu avô aperta sua mão e chora.
Uma hora depois, Shuaib está morto. Seu avô chorava silenciosamente, cobrindo seu pequeno corpo com seu cachecol e o levando para a mãe do menino.
A própria Muharram está inconsolável. "Quem é responsável pela morte de Shuaib?", pergunta ela.
"A guerra! Mas ele será considerado uma vítima de negligência do hospital. Milhares como ele estão morrendo. Será que eles precisam morrer bombardeados por um avião para serem reconhecidos como vítimas dessa guerra?", indaga.
Chega a notícia de que outro hospital, administrado pela ONG Médicos Sem Fronteiras, na cidade próxima de Abs, foi atingido por bombas de aviões da coalizão.
"Eles estão bombardeando hospitais! Por quê?", questiona Ashwaq. Uma das razões é que a Arábia Saudita acusa os rebeldes houthis de usar hospitais para guardar armas.
No dia seguinte, a BBC visita o hospital dos Médicos Sem fronteiras. Nas ruínas da ala infantil, uma cena desoladora: velas, chapéus de festa e restos de um bolo de aniversário se espalham pelo chão.
"As crianças estavam comemorando um aniversário antes de a bomba atingir o hospital", explica a administradora do local, Yahia al-Absy.
No total, 19 pessoas morreram no ataque ─ e o governo de Abs já não tem mais um hospital.
Em nota, o governo saudita negou estar atacando alvos civis ou missões humanitárias, alegando ser o maior fornecedor de ajuda humanitária para o Iêmen.
No dia seguinte, Ashwaq finalmente recebe boas notícias. Um amigo havia conseguido uma forma, a um alto custo, de obter o leite que salvaria a vida de Abdulrahman.
Assistindo a todo esse desespero por duas semanas, é incrível poder ver pelo menos um final feliz. Abdulrahman pega a garrafa de leite e bebe até a última gota ─ enquanto sua mãe, chorando, só sabe agradecer.
"Você trouxe felicidade para a minha casa", diz ela à médica, abraçando-a.
Apesar de Ashwaq ter conseguido salvar a vida de uma criança, outras milhões estão passando fome no Iêmen. Especialistas acreditam que, se algo não for feito agora, o país pode perder uma geração inteira de pessoas.
Conflito no Iêmen
O Iêmen está em estado de sítio. Dois anos atrás, rebeldes houthis e seus aliados ─ uma facção armada leal ao antigo presidente Ali Abdullah Saleh ─ tomaram o controle da maior parte do país, incluindo a capital Sanaa.
O então governo foi forçado a fugir. A Arábia Saudita diz que foi chamada a intervir a pedido da própria liderança local.
Por 18 meses, uma coalizão liderada pelo país, apoiada pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, luta contra os rebeldes. Uma guerra que não tem previsão para terminar.
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