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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

O que diz o projeto que está prestes a descriminalizar a violência doméstica na Rússia

  • Juliana Domingos de Lima
  •  06 Fev 2017

    Matéria foi aprovada em uma das Câmaras e, após passar pelo Parlamento, precisará da sanção do presidente Vladimir Putin

    O projeto de lei que descriminaliza a violência doméstica na Rússia, nos casos em que a agressão não causar danos à saúde da vítima e não houver repetição do ato, foi aprovado por deputados da Câmara Baixa (Duma) do Parlamento do país em 27 de janeiro.

    Foi a terceira e última leitura do projeto de lei pela Duma — a medida ainda precisará passar pela Câmara Alta do Parlamento antes de ser sancionada pelo presidente Vladimir Putin. Apesar de se dizer contrário ao uso da violência, o presidente declarou em dezembro, segundo o jornal britânico “The Guardian”, que a interferência do Estado na família é “inadmissível”.

    O que, na prática, a nova lei determina

    Se a lei for sancionada e entrar em vigor, a violência doméstica só resultará em prisão ou processo para o agressor quando ele voltar a bater no mesmo familiar no período de um ano. Ainda assim, será preciso que a vítima reúna por si as provas da agressão sofrida e compareça a todas as audiências judiciais. Isso porque a Justiça russa não atuará de ofício para investigar as acusações, o que significa que ela não agirá por iniciativa própria, apenas mediante as provas coletadas e apresentadas pela vítima. 

    Além disso, segundo o mesmo artigo publicado no jornal “The Guardian”, a definição de danos à saúde presente no texto da lei se refere a impactos duradouros à saúde da vítima, que exijam tratamento hospitalar. Agressões que resultem em hematomas, arranhões e sangramentos, mas não tenham esse “efeito duradouro” — como ossos quebrados ou uma concussão, por exemplo — não serão criminalizadas.

    O que ativistas temem que aconteça

    A determinação de que as pessoas trabalhem no próprio caso de violência para acusar um familiar, muitas vezes residente na mesma casa, tende a dificultar muito — senão inviabilizar — as denúncias, segundo especialistas.

    Além das dificuldades legais, ativistas de combate à violência contra as mulheres afirmam que a descriminalização irá legitimar o abuso. “A mensagem geral para os cidadãos russos é que violência doméstica não é crime”, disse Andrei Sinelnikov, membro do “Anna”, um centro nacional russo de prevenção à violência contra as mulheres, à revista “The Economist”.

    Histórico: na Rússia

    A lei russa existente não fazia distinção, até 2016, entre a violência doméstica e outras formas de agressão, ignorando que cônjuges ou filhos são vítimas especialmente vulneráveis por serem familiares dos agressores.

    Segundo uma reportagem da emissora “BBC” de 2013, milhares de mulheres tiveram mortes causadas por violência doméstica naquele ano na Rússia, de acordo com dados oficiais, sem que esse tipo de violência fosse reconhecido como crime.

    Em 2016, uma hashtag quebrou o silêncio sobre as numerosas vítimas de abuso familiar no país. Mulheres que foram vítimas de violência em casa compartilharam seus relatos nas redes sociais com a tag “eu não tenho medo de falar”.

    A lei que criminaliza especificamente a violência contra familiares foi aprovada em junho daquele ano, portanto não chegou a completar um ano. Para Graciela Rodriguez, socióloga pela Universidade Nacional de Córdoba e coordenadora do Instituto Equit, uma organização que atua globalmente nas áreas de gênero, economia e cidadania, o projeto de lei que tramita agora é uma reação conservadora à mobilização do último ano.

    “A Rússia vive uma situação complexa. Houve vários avanços [para as mulheres durante o regime soviético], como creches, a entrada no mercado de trabalho, mas isso regrediu completamente depois da perestroika”, diz Rodriguez , que trabalha na Equit diretamente com os BRICs, Rússia inclusa,  em entrevista ao Nexo.

    O artigo “A emergência de regimes de violência doméstica contrastante na Europa pós-comunista” menciona que o crescimento das taxas de violência doméstica é um dado presente nos países após o fim da União Soviética, em 1991.

    Retrocesso ou sintoma

    Se a descriminalização da violência doméstica for aprovada no país, ela tende a fortalecer a ideia de que em violência doméstica “não se mete a colher”. O impacto deverá ser não apenas para os cônjuges, mas também crianças e jovens. No contexto de intolerância a homossexuais no país, filhos gays podem ser castigados fisicamente sem que a Jutiça interfira, diz Rodriguez.

    Apesar de concordar com o retrocesso provocado pelo projeto de lei, Rodriguez tem críticas ao que identifica como um viés excessivo dado pelo movimento feminista, de modo geral, à criminalização. “Precisamos criminalizar muitas coisas numa sociedade que não sabe agir se não tem castigo, penalidade ou multa. Mas dar mais ênfase à prevenção, na discussão de que [a violência doméstica contra as mulheres] tem raízes em relação de poder desigual, histórica”, diz.

    Nesse sentido, segundo ela, o caso russo é uma oportunidade para refletir sobre como a punição não resolve a fundo o problema da violência de gênero. Para Rodriguez, a tentativa de descriminalização e a persistência da violência doméstica na sociedade é um sinal de que, na Rússia, mesmo com os avanços na igualdade de gênero alcançados no século 20, não houve uma mudança verdadeira, consolidada, na relação entre homens e mulheres.

    A superação das desigualdades por meio de uma educação igualitária sobre os papéis de gênero é o que constrói essa mudança, segundo a socióloga. “No início, tem que criar mesmo um arcabouço que proteja as vítimas. Mas é preciso pensar de que forma podemos avançar de forma mais libertária, com menos ênfase na punição”, diz. “Mesmo a Lei Maria da Penha inclui aspectos educativos e preventivos”.

    A criminalização da violência doméstica no mundo

    A agressão a mulheres e crianças no ambiente familiar existe pelo menos desde a Idade Média. Ela está ligada, em parte, à ideia de uma hierarquia familiar na qual um chefe exerce controle sobre esses familiares, chamados de “vulneráveis”.

    Na maioria dos países ocidentais, inclusive no Brasil, leis em vigor durante até parte do século 20 garantiam o direito à aplicação de castigo físico em caso de desobediência dos filhos ou da cônjuge. Para a esposa, cabia punição se, por exemplo, ela se recusasse a ter relações sexuais com o marido. No Brasil colonial, o marido era expressamente autorizado por lei a matar a esposa caso ela o traísse.

    As agressões no âmbito familiar eram, até aquele momento, vistas como um assunto privado, que não competia ao Estado. O reconhecimento da violência doméstica — física ou sexual — cometida por um companheiro só passou a existir a partir de reivindicações do movimento feminista nas décadas de 1960 e 70.

    A discussão sobre a violência e o papel das mulheres na família redefiniu temas que antes eram vistos como privados como dignos de serem debatidos na esfera pública e, a seguir, legislados. No Brasil, essa discussão surgiu com mais força nos anos 1980 e resultou na Lei Maria da Penha, de 2006.

    Principalmente nos últimos 30 anos, muitos países avançaram nas leis de punição à violência doméstica, segundo Graciela Rodriguez. A criminalização é defendida por estudos e ativistas como um passo importante no combate à violência de gênero. “A impunidade cultiva a tolerância social com a violência”, disse a relatora sobre os Direitos das Mulheres da OEA (Organização dos Estados Americanos), Tracy Robinson, em entrevista à revista “Carta Capital”.

    Um estudo feito na Universidade de Nova York mostra que a simples aprovação de leis de proteção às vítimas de violência doméstica pode ter um efeito positivo para combater à infrações.

    Para Rodriguez, a visibilidade dada ao assunto, a possibilidade de denunciar e falar sobre ele publicamente, foi uma grande conquista do movimento feminista.

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