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sábado, 25 de março de 2017

ENTREVISTAS “O poder público encara a política de transporte como neutra e não considera o recorte de gênero nem em seus estudos”

Por Natália Mazotte*
24/03/2017

Maioria nos deslocamentos a pé e no uso do transporte coletivo, as mulheres têm uma vivência privilegiada do espaço público e de seus equipamentos. Por essa razão, são as mais impactadas quando as políticas de mobilidade não funcionam. Partindo dessa conclusão, a diretora-executiva do ITDP Brasil (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento, na sigla em inglês), Clarisse Linke, critica a falta de estudos e levantamentos com recortes de gênero nessa área.

A organização dirigida por ela é referência na articulação com órgãos governamentais para incentivar um planejamento urbano mais humano e participativo. Entrevistada pela Gênero e Número, a especialista afirma que pensar o design das cidades e do transporte levando em conta a perspectiva das mulheres é um caminho para promover maior acesso à cidade, mas os planos de mobilidade municipais, obrigatórios desde a Lei 12.587 (Política Nacional de Mobilidade Urbana) ainda passam longe dessa discussão.

GÊNERO E NÚMERO – Você está atualmente engajada em algum projeto sobre mobilidade com recorte de gênero dentro do ITDP?
Clarisse Linke – O ITDP já esteve envolvido em questões de mobilidade e gênero, mas não é o foco. Recentemente isso ganhou força novamente e recebemos um financiamento para fazer um projeto piloto na região metropolitana do Recife para entender o impacto do planejamento e da infraestrutura urbana para mulheres, com recorte de classe e raça. Queremos usar Recife como uma experiência piloto para ver o que conseguimos de dados para sair do discurso genérico.

Ainda são poucas as pesquisas no campo da mobilidade, com esse recorte específico. Por quê?
Clarisse – Sim, as coisas produzidas são muito pontuais. Um exemplo é o estudo da Superintendência Municipal de Transportes Urbanos (SMTU), publicado em novembro passado, que olha para os dados da pesquisa Origem e Destino (OD) de São Paulo. Mas nem se compara com o que foi feito, por exemplo, em Viena, onde as mulheres foram entrevistadas para participar, de fato, da construção da política pública. Não foi uma análise fria de dados quantitativos.

O processo de elaboração da política de mobilidade deveria considerar que há, sim, diferentes padrões entre homens e mulheres. Mas hoje o poder público encara a política de transporte como neutra, então sequer levanta a perspectiva de gênero em seus estudos.

É como se mulheres e homens estivessem submetidos aos mesmos riscos e ao mesmo tipo de experiência. Isso não é verdade. O ITDP pretende fazer levantamentos para caracterizar melhor esses padrões diferentes de deslocamento por gênero, e buscar sensibilizar para que isso seja incorporado ao processo de tomada de decisão e de elaboração das políticas públicas. O caso de Viena e outros exemplos que consideraram as mulheres não apenas como usuárias ou clientes, mas as envolveram desde o começo da formulação das políticas, são nossas inspirações.

Dentro do que já foi pesquisado sobre isso, que diferenças fundamentais entre gêneros são observadas, na prática, e deveriam ser consideradas nas políticas públicas?
Clarisse – A principal é que a dinâmica de mobilidade do homem costuma ser mais pendular e linear, ele vai e volta da casa para o trabalho. A principal atividade dele diária é o trabalho produtivo, formal ou informal. O número de viagens dele, via de regra, é muito mais limitado. Já a mulher, em geral, faz não só o trabalho produtivo como também é majoritariamente responsável pelo trabalho reprodutivo. As mulheres têm um papel fundamental de cuidado, seja de idosos ou crianças. Então tendem a fazer viagens mais curtas e diversas, espalhadas durante o dia em horários diferentes.

Ao levar essas diferenças em conta, que ações deveriam ser pensadas por quem formula as políticas de mobilidade?
Clarisse – Essas atividades relacionadas ao cuidado demandam mais viagens – se você vai do trabalho ao mercado e depois para casa, são duas viagens, porque são dois destinos. Então há viagens mais encadeadas e espalhadas no território. Do ponto de vista do planejamento de transporte, as integrações não nos beneficiam, são integrações temporais. A infraestrutura física e operacional dessa integração também não nos beneficia, porque não sabemos se, por exemplo, vamos sair do metrô e ter o ônibus em um horário certo para continuar o percurso, ou se teremos segurança no percurso a pé entre o metrô e o ônibus. Às vezes a integração é distante, é necessário caminhar um percurso mais longo, e se estamos com crianças, sacolas, como conseguir chegar a tempo para a segunda perna?

Portanto, um ponto são as integrações operacional, tarifária, física e de informações, que são péssima para todo mundo, mas para as mulheres causam um impacto maior, porque elas costumam fazer mais viagens. E para quem mora na periferia, isso é ainda pior. Se o sistema funciona bem, conseguimos cumprir melhor todas as tarefas que fazem parte do trabalho reprodutivo, infelizmente ainda essencialmente feminino.

Sobre a percepção de segurança das mulheres em seus deslocamentos, como isso afeta a utilização do transporte público por elas?
Clarisse – A questão da segurança afeta todo mundo, mas se estamos com crianças e idosos, somos alvos mais vulneráveis. A mulher mais pobre está no transporte público, mas assim que pode migra para o carro. Geralmente a mulher caminha mais e usa mais transporte público que o homem, mas assim que pode migra para o carro também, por uma questão de percepção de segurança e conveniência. A segurança é problemática não só dentro do sistema, do transporte público, mas também e principalmente no entorno do sistema. Se temos um ponto de ônibus ao lado de um terreno baldio, com uma iluminação muito falha, vamos nos sentir seguras para utilizá-lo? Quem planeja o transporte público, planeja só o corredor do sistema, não planeja a caminhada da pessoa até sua casa, que chamamos de last mile (última milha). E isso é fundamental pra fazer com que as pessoas desejem utilizar o transporte público e confiem nele. Não basta confiar no ônibus, é preciso confiar também nesses trajetos iniciais e finais, senão o carro se torna a saída, já que deixa na porta de casa. Não dá pra separar o planejamento urbano da questão da mobilidade.

Não há um risco de, quando pensamos no design das cidades, conformarmos esses estereótipos de gênero?
Clarisse – A questão da segurança afeta todo mundo, mas se estamos com crianças e idosos, somos alvos mais vulneráveis. A mulher mais pobre está no transporte público, mas assim que pode migra para o carro. Geralmente a mulher caminha mais e usa mais transporte público que o homem, mas assim que pode migra para o carro também, por uma questão de percepção de segurança e conveniência. A segurança é problemática não só dentro do sistema, do transporte público, mas também e principalmente no entorno do sistema. Sim, há um receio de conformar a divisão desigual do trabalho reprodutivo e desenhar uma cidade para que a mulher continue sendo a única responsável pelas tarefas de casa. Seria uma idiossincrasia.

Investir apenas no desenho da cidade não resolve. Há questões culturais e educacionais e isso precisa fazer parte de uma política mais ampla e de um desejo genuíno de construção de uma sociedade mais justa. Pensar o espaço da mulher nos locais de poder e de decisão, pensá-las com papel político real, não apenas protocolar. Como isso é tratado nas escolas? Nos lares? Mas, na prática, também não podemos ignorar as disparidades de gênero atuais. O vagão rosa é um exemplo micro nesse debate. Ele sozinho não resolve, ele segrega. Somos metade da população e temos um único vagão. Isso não resolve muita coisa. Por outro lado, a opinião de uma usuária da zona sul [área nobre do Rio de Janeiro] sobre ele é muito diferente da opinião de quem mora na periferia. Na rotina diária das mulheres que pegam o trem no horário de rush de uma ponta a outra, ter o vagão faz diferença. Não seria burguês demais as feministas da zona sul acharem um absurdo o vagão rosa?

Os municípios atrasaram planos de mobilidade e Governo Federal ampliou o prazo para abril de 2018. Você tem visto esse debate ser considerado nesse período de formulação?
Clarisse – Não vi um plano até agora que mencionasse a palavra ‘gênero’. É fundamental os municípios terem dados. Ou origem-destino ou pesquisas menores dependendo do tamanho do município. Precisa entender onde as pessoas estão, para onde elas vão, dados de colisões e vítimas, só para dar alguns exemplos. Mas para isso você precisa ter um entendimento de que é essencial, e de que os municípios precisam produzir dados georreferenciados e territorializados. Quando mais detalhe, mais rico é o processo de planejamento.

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