Praticidade não é o único critério; Sensação de segurança e preço são levados em conta pelas mulheres
Por Patrícia Gomes*
20 DE MARÇO DE 2017
Véspera de feriado na cidade de São Paulo. Já era noite quando Regiany Silva, 28 anos, saiu do trabalho em Pinheiros, zona oeste de SP, rumo a uma casa de shows na Barra Funda. Lá, iria se encontrar com a mãe e a irmã, que vinham de Itaquera, na zona leste. O motivo era nobre: iriam assistir ao show do Roupa Nova, grupo que a mãe, dona Terezinha, tanto gosta. Acostumadas a andar sozinhas pela cidade, naquela noite as três mulheres estavam aflitas com uma combinação de fatores inédita. Era a primeira vez que saíam sozinhas, para um show tão distante, tão tarde, sem carro, sem terem garantido a carona da volta e sem a presença de um homem da família.
Na ida não haveria mistério. Regiany só precisava pegar um ônibus. Para a mãe e a irmã, que vinham de mais longe, seria preciso fazer uma caminhada de 10 minutos até o trem, andar duas estações, baldear para o metrô e, 17 paradas depois, estariam no destino final. O problema era a volta. Marcado para começar às 22h30, o show facilmente terminaria depois de 0h18, horário exato em que o último carro de metrô passaria na estação próxima à casa de shows naquela noite. Regiany ficou de olho no relógio até que, lá pelas horas tantas, aceitou que teria mesmo de voltar de táxi e relaxou. Paciência. Agora era torcer para, primeiro, encontrar um motorista que não negasse a corrida até Itaquera e, segundo, não ter que pagar um preço exorbitante por isso. Quem sabe um dos apps que usava eventualmente para distâncias curtas ajudaria.
Corta para Brasília. A filha da advogada Luciana Alves, 30, ardia em febre. O marido tinha ido trabalhar de carro mais cedo, quando a menina não dava sinais de que ficaria doente. Mas agora a jovem mãe estava sozinha em casa com o bebê, então com três meses, chorando. Era tudo novo para ela naquela situação: a cidade, para onde tinha se mudado havia pouco por causa do emprego do companheiro, a maternidade e também a criança com febre.
Quando percebeu que as medidas caseiras para baixar a temperatura da filha não estavam fazendo efeito, ela decidiu que precisava ir correndo à emergência do hospital, cujo caminho conhecia apenas vagamente. Não hesitou. Colocou a criança na baby bag, sacou seu celular e pediu um Uber. Seria apenas a primeira das muitas vezes que Luciana usaria o aplicativo para sair com a menina. Mas mesmo antes de se tornar mãe, desde que passara a viver no Distrito Federal, o app, que considerava opção mais segura que o táxi, tinha começado a fazer mais parte da sua vida para atividades corriqueiras todas as vezes que o carro da família não estava à disposição: ir ao mercado, voltar do aeroporto, encontrar com amigas e, mais recentemente, levar a filha para algum compromisso.
Embora estejam em cidades e situações diferentes, Regiany e Luciana têm algo em comum. São mulheres que usam aplicativos de transporte individual, como Uber, 99, Easy Taxi e tantos outros, para chegar onde querem ir. Elas entendem os apps como um bom serviço para facilitar seus deslocamentos. As motivações para optarem pelos aplicativos e não transporte coletivo ou carro próprio, mesmo quando há um à disposição, resultam de uma equação que inclui as variáveis conforto, comodidade, preço e segurança.
Nas categorias comodidade e conforto, as mulheres, sobretudo as de mais alta renda, usam esses apps para ir e vir do trabalho em dias específicos, para compromissos rotineiros, levar e buscar os filhos, para encontrar com os amigos no fim de semana, quando querem beber e não estão a fim de dirigir, quando vão voltar mais tarde para casa e buscam mais segurança.
Para meninas e mulheres de baixa renda, o fator que mais costuma levá-las a apertar o botão “solicitar carro” é o preço, avalia Regiany, que é cofundadora do coletivo Nós, Mulheres da Periferia e conhece bem a realidade de quem mora em bairros mais afastados dos grandes centros. “Mobilidade é uma questão crucial para a gente que vive do outro lado de uma cidade do tamanho de São Paulo. Na quebrada, o valor dos apps é diferente de ‘poder beber na baladinha e pedir um [carro na] Uber depois’,” diz a designer.
‘Hoje vou me dar ao direito’
As cidades sabem bem pouco sobre como o deslocamento feminino ocorre dentro de seus limites, mas não há dúvidas de que seja o transporte público que atende a maior parte da população, especialmente as mulheres de baixa renda. O app, para essas mulheres, ainda é um luxo. Em São Paulo, a cidade mais populosa do Brasil e uma das poucas a produzir dados sobre o assunto, o estudo “A mobilidade das mulheres na cidade de São Paulo” mostrou que 74,6% das mulheres se locomovem com transporte coletivo e a pé. Publicado em novembro passado, o informe se baseou em dados de 2012 da pesquisa Origem-Destino do metrô, que embora seja a mais recente disponível, não chegou a registrar o movimento dos aplicativos na rotina da paulistana (a Uber, por exemplo, chegou ao Brasil em 2014).
“Na Vila Madalena [bairro nobre e boêmio de São Paulo], o povo fala da cultura de ‘não ter carro’, e isso por aqui parece que é super cult. Na periferia ter um carro é meta de vida. Eu até acredito que esse tipo de serviço possa melhorar a nossa vida na periferia também, mas não tem ninguém pensando sobre as especificidades dessa população, da mulher dessa população”, diz Regiany.
Ela mesma usa esses aplicativos em situações pontuais, majoritariamente para distâncias curtas e corridas baratas. Se vai a um evento depois do horário de trabalho em um local um pouco mais longe do metrô, pede um carro para ir até o transporte público com o qual vai fazer a maior parte do percurso. Se vai resolver algum assunto rápido da hora do almoço, também pede. Se precisa levar os gatos ao veterinário do bairro, o app é uma opção. E tem o dia também em que ela se “dá ao direito”, o que aconteceu pela primeira vez no dia do show.
“Foi empoderador perceber que o aplicativo era uma opção, mesmo para uma distância mais longa e àquela hora da noite”, lembra a designer. Empoderador, mas ainda assim bem longe de ser uma experiência tranquila do início ao fim. Carros da Uber não podiam entrar no espaço da casa de shows e, se fosse para o lado de fora, teria de esperar numa área erma e escura. Optou pelo 99. “O motorista não negou a corrida, mas eu senti um desconforto nele. Ele, que morava em Pinheiros, raramente ia para a zona leste e ficou nervoso ao andar pelas ruas menores do meu bairro”, conta ela.
Mas ser mais barato, ainda assim, não garante o acesso, ressalta a jovem, listando casos das meninas que fazem parte da sua rede e têm dificuldade de usar os aplicativos. A primeira limitação é de renda mesmo. Para entrar no aplicativo, o celular precisa ter crédito e acesso à internet ou estar no wifi. Além disso, há até bem pouco tempo era preciso cadastrar um cartão de crédito para usar o Uber, o que deixava de fora todas as mulheres que não têm cartão ou mesmo não têm conta bancária. O segundo obstáculo é geracional, de uso das novas tecnologias. “Nossas mães só agora entraram no Whatsapp e no Facebook. Ainda não entendem de GPS”, pontua Regiany.
Embora não haja dados oficiais centralizados sobre a quantidade de mulheres que faz uso dessa modalidade de transporte, o aquecido mercado desses aplicativos, alguns deles dedicados exclusivamente a mulheres, é um indicativo de que existe uma demanda crescente para o serviço. Uber, Easy Táxi e 99 contabilizam juntos milhares de usuários em cidades brasileiras. A 99 tem 1,8 milhão de usuários cadastrados no país, sendo 45% deles mulheres; a Uber tem 9 milhões de usuários ativos no país, mas não sabe quantificar o percentual formado pelo público feminino. A Easy Táxi não respondeu aos pedidos de informação da reportagem.
De olho na demanda feminina, empresas segmentam
Iniciativas voltadas a atender exclusivamente a demanda delas estão pululando aqui e ali no aquecido mercado de aplicativos de transporte. Em outubro passado, a 99 lançou o 99 Motorista Mulher, um botão que permite que a passageira opte por ser conduzida por uma mulher. A novidade veio depois que a empresa consultou clientes e descobriu que 56,5% das entrevistadas gostariam de ter essa opção.
No Recife, um grupo feitos “por elas e para elas”, o Motoristas Minas e Monas nasceu a partir uma organização informal de conhecidas. Kamila Alves, 29 anos, que na época era motorista de Uber, lançou a ideia no Facebook: se ela criasse um grupo de WhatsApp só para atender mulheres, será que elas se interessariam? Centenas de meninas disseram que gostariam de participar. Funciona assim: uma menina diz que vai a tal lugar em determinado horário e pergunta se tem alguma motorista disponível. Qualquer menina que tenha um carro e queira fazer uma grana extra pode se oferecer ao serviço, para o qual é cobrada uma taxa de R$2,50 por km. Dessa maneira, entre as participantes do grupo, há mulheres que são motoristas, mulheres que são passageiras e mulheres que ora são uma coisa ora são outra.
“Somos mulheres ajudando umas às outras”, diz Kamila, que hoje não é mais motorista, mas segue moderando o grupo, que tem 256 participantes, o limite de membros que o WhatsApp permite. Kamila adiciona pessoas, contata motoristas, resolve eventuais conflitos. O grupo funciona desde agosto e, como está na sua lotação máxima, para que uma menina seja adicionada, algum membro atual precisa sair. Tem fila de gente interessada.
Em dezembro, foi a vez de Charles-Henry Calfat, 26 anos, colocar em prática uma ideia que estava martelando a sua cabeça havia três anos: a Femitaxi. O jovem franco-brasileiro tinha amigas que se queixavam de comportamento inadequado de taxistas. Viu o movimento de apps acontecer no Brasil e queria desenvolver um feito só com taxistas mulheres.
Lançou primeiro o serviço em São Paulo, onde conta com 160 taxistas. No mês seguinte, chegou a Belo Horizonte e já conta com 75 motoristas em sua rede. Calfat orgulha-se de oferecer mais segurança não só para a passageira, mas também para a motorista.
Na semana anterior ao Carnaval foi a vez da Venuxx entrar em operação na Grande São Paulo. O aplicativo trabalha de maneira semelhante à Uber, com carros particulares. De acordo com Diogo Gomes, cofundador da plataforma, seu objetivo não é competir com os grandes, mas oferecer uma experiência memorável para a mulher que escolhe ir de Venuxx e para a que está no volante também. Além da balinha e da água, por exemplo, o aplicativo oferece produtos orgânicos e veganos e outros mimos para as passageiras, como cremes de mão, álcool em gel e lixa de unha.
Insegurança: Confiar desconfiando
No centro das discussões sobre o lançamento dessas iniciativas está a segurança da mulher. De acordo com pesquisa realizada pela Énois Inteligência Jovem e os institutos Vladimir Herzog e Patrícia Galvão na campanha #meninapodetudo, 90% das mulheres já deixaram de fazer alguma atividade por medo da violência, inclusive sair à noite. Das entrevistadas, 77% disseram ter sofrido algum tipo de assédio sexual.
Os apps estão atentos a todo esse contingente de mulheres que se sentem inseguras nas ruas. Eles se oferecem como uma opção duplamente convenientes nesses casos: tanto as protegem dos percalços dos caminhos quanto são (ou seriam) um espaço seguro contra motoristas de comportamento inadequado por oferecerem recursos de identificação dos taxistas. Mostram quem é o condutor, a placa do carro, as avaliações de outras usuárias e ainda permitem que o trajeto seja compartilhado.
Luciana, a mãe do início da matéria, antes de conhecer os apps só ficava tranquila em uma condição. “No táxi só me sentia segura se ligava para uma cooperativa. Porque aí, quando o táxi chegava, já sabia o carro e o motorista.” Agora, ela se sente mais segura quando pede um carro pelo aplicativo, mas, ainda assim, confia desconfiando: “Sempre printo a tela como nome do motorista e mando para o meu marido para alguém mais saber onde e com quem eu estou. Sei lá, né”, diz a advogada.
Mas mesmo com todos essas possibilidades de identificação, há quem ainda não se sinta à vontade. Kamila Alves, 29, que foi motorista de Uber, lembra claramente a sensação mútua que existia quando uma passageira sentava banco de trás: alívio. “Quando as meninas entravam no carro sempre diziam: ‘Ainda bem que você também é mulher. O fato de eu ser uma motorista mulher levando uma passageira é mais seguro para elas e para mim”, conta ela, que ouviu histórias de meninas que tinham sofrido assédio e já se sentiu insegura ao transportar passageiros homens.
Cartilha para motoristas
Na semana pós Carnaval, os dois maiores aplicativos do mercado brasileiro, Uber e 99, lançaram cartilhas contra o assédio. As empresas criaram material educativo voltado para motoristas, com orientações sobre o que devem e não devem fazer enquanto estiverem transportando mulheres. A 99 promoveu também workshops com motoristas da sua rede e a Uber divulgou um vídeo.
Regiany, Luciana, Kamila são mulheres que têm usado aplicativos de transporte individual para circular pela cidade. No corre do dia a dia, desbloquear o celular e chamar um carro passou a ser uma opção cômoda, rápida, fácil e mais barata. Mas, se por um lado, o mercado aquecidíssimo reflete o uso por mulheres de todas as classes sociais, é cedo para dizer que o serviço é usado “por todo mundo”. Os apps não são exceção nem regra dessa nova maneira urbana de circular, da qual ainda se sabe tão pouco –seja porque governos ainda não estão coletando dados a respeito, seja porque os aplicativos só compartilham os dados que lhes interessam. Mas quando o guru do universo cibernético William Gibson disse, ainda em 1993, a célebre frase “o futuro já chegou, só não é distribuído igualmente entre as pessoas”, ele parecia estar se referindo exatamente às usuárias de Uber, 99, Easy Táxi e afins.
Patrícia Gomes é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.
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