por Matheus Pichonelli — publicado 22/03/2017
No filme de Thomas Lilti, médicos definem o ofício como a luta eterna contra a "barbárie da natureza, mesmo sabendo que ela ganhará no fim”
“Esse trabalho é muito angustiante. Sinto que há 20 anos trabalho sofrendo, com dificuldade, preocupado. Nós consertamos. Na medicina, consertamos. Consertamos as besteiras da natureza. A natureza pode ser outra coisa para os religiosos, mas não me digam que a natureza é algo belo. Na natureza há coisas belas, e também horríveis. A natureza é uma barbárie. Lutamos eternamente contra uma barbárie. Mesmo sabendo que ela ganhará no fim”.
O desabafo é de Jean-Pierre, personagem de François Cluzet no filme “Insubstituível”, que estreou há algumas semanas – e sem muito alarde – nos cinemas por aqui.
Dirigido por Thomas Lilti, cineasta e médico ainda atuante, o drama foi visto por mais de 2 milhões de pessoas na França.
O relato-desabafo do personagem médico dirigido por um médico cineasta, que já havia entrado na temática em seu trabalho anterior, Hipócrates (é diretor também de Anos Incríveis), ajuda a explicar a comoção com o filme em seu país de origem, onde, segundo as projeções, metade da população terá mais de 50 anos até 2025, mas tem mais a ser apreendido na rotina aparentemente corriqueira no interior, onde atua como uma espécie de médico da família.
A começar pelas questões da longevidade e da finitude colocadas em primeiro plano em um cenário aparentemente imutável, mas já transformado por uma nova realidade social e cultural em curso – no baile daquela comunidade no interior, longe dos cartões-postais parisienses, a música que toca é folk americano, e a estética é mais próxima de cowboys texanos do que com a Nouvelle Vague. É a França contemporânea de Macron e Le Pen.
Jean-Pierre é um médico diagnosticado com uma doença terminal que recebe a ingrata missão de cuidar da transição do próprio ofício e legado. Passa a ser acompanhado por uma médica recém-formada (Marianne Denicourt) que deverá substituí-lo em breve. Os conflitos são sutis e corriqueiros.
Parte dos pacientes não aceita ser tratada por uma mulher, e ela precisa o tempo todo demonstrar a capacidade para lidar com as situações-limite, que, ali, são também geográficas. Para chegar à casa dos pacientes, é preciso cruzar estradas de terra, enfrentar animais, a chuva, problemas de comunicação.
Naquele cenário de expectativas de vida alongadas e não exatamente amigáveis nem com quem cuida nem com quem é cuidado, médicos e pacientes envelhecem na mesma limitação. Eles se compreendem e se identificam na finitude e na dificuldade em conter a barbárie dessa natureza que, como diz seu protagonista, será sempre vitoriosa.
Morte e finitude têm sido temas de alguns dos mais importantes trabalhos recentes no cinema contemporâneo (“Amor”, de Haneke, “45”, de Andrew Haigh, e “Longe Dela”, de Sarah Polley, são alguns exemplos). Aqui o foco não é só o paciente, mas também quem diagnostica, o que envolve um estado de alerta e uma ética médica nem sempre lembrados quando o que está em jogo é viver ou não.
Recentemente os irmãos Dardenne levaram às telas este conflito com “A Garota Desconhecida”, saudado pelo psicanalista Contardo Caligaris como o melhor filme já visto por ele sobre o que é ser médico.
“Insubstituível”, que também aborda os diagnósticos de efemeridades do corpo e também da comunidade onde se comunicam, chega aos cinemas mais ou menos na mesma época. Vistos em sequência, os dramas servem como reflexão sobre algumas das mais agudas angústias do mundo atual: as relacionadas ao contato só aparentemente harmônico entre envelhecimento e continuidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário