Por Débora Diniz*
01/06/2017
Em 8 de março de 2017, o Supremo Tribunal Federal recebeu pela primeira vez uma ação de descriminalização do aborto no país, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442 (ADPF 442). Hoje, aborto é crime, que apenas não recebe punição nos casos de estupro, risco à vida da mulher ou anencefalia. A pena para a mulher que aborta é de 1 a 3 anos de prisão, e para quem a auxilia a abortar, como médicos ou outros profissionais da saúde, é de 1 a 4 anos. A ação pede a revisão desses dois artigos do Código Penal, à luz da Constituição Federal, para que o aborto solicitado por uma mulher, não importa por qual razão, nas 12 primeiras semanas de gravidez, não seja mais um crime.
A justificativa do pedido é que a criminalização do aborto viola uma lista longa de direitos fundamentais das mulheres, que podem ser resumidos neste argumento central: a criminalização do aborto viola a dignidade e a cidadania das mulheres. Na ação, dignidade foi explicada como a autonomia da mulher para tomar suas decisões. Somente sendo livre para decidir uma mulher pode ter a vida digna. Já cidadania equivale a ter as condições necessárias para viver uma vida digna, para exercer a autonomia de tomar decisões.
Essas condições incluem não sofrer discriminação de gênero, racial e de classe (são as mulheres negras, indígenas, nordestinas e pobres as que têm mais direitos violados pela criminalização do aborto); não sofrer tortura e tratamentos desumanos, causados pela negação de atendimento a uma necessidade de saúde como é o aborto; e ter acesso a serviços de saúde e às condições para decidir se, quando, como e com quem ter filhos.
A ação que está hoje no Supremo segue o caminho de casos anteriores, especialmente das decisões nos casos de anencefalia (ADPF 54), julgado em 2012, e células tronco (ADI 3510), julgado em 2008. Nesses dois casos, a Corte já decidiu que embriões, fetos e pessoas nascidas não são protegidas da mesma maneira pela Constituição Federal, o que é também o argumento da ação hoje em curso. Ou seja, é possível dizer que o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou e decidiu sobre importante parte dos fundamentos da ação que hoje espera julgamento, reconhecendo os direitos fundamentais das mulheres.
A ADPF 442 está hoje sob a relatoria da ministra Rosa Weber. Esse é um fato importante, não só porque ela é uma das duas únicas mulheres na Corte, mas também porque ela deu um voto consistente no julgamento do caso de anencefalia e já se pronunciou favoravelmente à descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação no julgamento de outro caso, em novembro de 2016. Esse caso anterior não alterou o entendimento sobre a lei penal, porque tratava apenas de uma decisão específica sobre a prisão de funcionários de uma clínica, mas é um importante indicativo de como a ministra entende o tema. Ela é quem conduz o julgamento desta ação: é responsável pela elaboração do voto principal e decidirá quando o caso entrará na pauta de julgamento do tribunal.
Até o momento, ela seguiu o curso do processo com rapidez, e solicitou às autoridades relacionadas ao pedido que se pronunciassem sobre o tema. A Câmara dos Deputados, o Senado Federal e a Advocacia-Geral da União já se pronunciaram, restando apenas a manifestação da Procuradoria-Geral da República. As primeiras manifestações, como esperado, foram contrárias ao pedido, mas não foram manifestações fortes, e praticamente se limitaram a dizer que a lei deve permanecer como está.
A expectativa sobre a resposta da Procuradoria-Geral é positiva, especialmente porque o órgão já se manifestou favoravelmente ao pedido de aborto em caso de infecção por zika, quando consultado pelo STF em 2016 sobre o tema. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão também divulgou em 10 de maio de 2017 parecer favorável, com exposição longa de argumentos, à descriminalização do aborto. Nada disso obriga o parecer do Procurador-Geral, mas são indicativos positivos do entendimento do Ministério Público Federal sobre os direitos das mulheres. Assim que a resposta da Procuradoria for entregue ao Supremo, a ministra Rosa Weber já poderá decidir colocar o julgamento do pedido de urgência para esta ação na pauta do tribunal.
Estamos vivendo um momento histórico, em que pela primeira vez uma ação pela descriminalização do aborto chega à Corte Suprema de um país na América Latina – trajetória que já foi a de tantos países que descriminalizaram o aborto por tribunais, como a Alemanha e os Estados Unidos. Ainda que inédita, a ação é baseada em uma discussão longa sobre o tema, inclusive já enfrentada nos últimos 15 anos pelo nosso Supremo Tribunal Federal. É o momento de rever a lei penal para defender a vida, a dignidade e a cidadania das mulheres no Brasil.
*Débora Diniz é escritora, pesquisadora do Instituto de Bioética e uma das líderes da ação no STF pela descriminalização do aborto.
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