Resumo: O artigo visa analisar e apresentar algumas reflexões sobre as diversas formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, que não conhece fronteiras geográficas, culturais ou de riquezas. Esse fenômeno registrou um enorme crescimento nas sociedades contemporâneas, implicando em graves violações dos direitos humanos e na tipificação penal de determinadas ações. Em relação à legislação brasileira, percebe-se que a Lei Maria da Penha inova o conceito de família, cria mecanismos legais para a proteção das mulheres, mas também, sua aplicabilidade precisa ser maior e com mais eficácia na prática.
Introdução
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 desempenha um papel de profunda importância e proteção no âmbito das relações familiares na presente contemporaneidade brasileira, quando assegura a igualdade entre os homens e mulheres (artigo 5º, inciso I) e a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III). Com estes princípios constitucionais e o advento da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, mais conhecida como, Lei Maria da Penha, buscou-se coibir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher no país. Dessa forma, não há dúvida, da preocupação da sociedade e dos legisladores brasileiros com esse tipo de violência. Entretanto, esse fenônemo comportamental em vez de diminuir, está tomando uma proporção crescente na atualidade que, tanto suscita graves violações dos direitos humanos quanto a sua tipificação penal (BRASIL, 2006 & 2016; WAISELFISZ, 2015).
A Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flasco) realizou um estudo sobre a presença da violência no Brasil. Com a obtenção dos dados elaborou-se o “Mapa de Violência - 2015”, com o objetivo de verificar a evolução recente dessa questão no país e no mundo. O Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) - da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), do Ministério da Saúde (MS) foi fonte básica para o fornecimento dos dados de homicídios, com apuração até o ano de 2015. De acordo com os registros do SIM/MS entre os anos de 1980 e 2013, o país contabilizou 106.093 assassinatos de mulheres. Somente no ano de 2013, foram vitimadas 4.762 mulheres; e destas, 1.583 mortas dentre seus familiares (parceiro e ex-parceiro), o que representou 33,2% do total de homicídios na época. Em conformidade com os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil ao ser comparado entre 83 países do mundo é posicionado na 5ª posição internacional em relação à taxa de homicídios de mulheres e somente está em melhor posição perante El Salvador, Colômbia, Guatemala e a Federação Russa, que ostentam taxas superiores as do Brasil (WAISELFISZ, 2015). Segundo Annan, ex-secretário-Geral das Nações Unidas, em sua Sessão Extraordinária da Assembleia Geral, “Mulher 2000”, afirmou: "A violência contra as mulheres é talvez a mais vergonhosa violação dos direitos humanos. Não conhece fronteiras geográficas, culturais ou de riqueza. Enquanto se mantiver, não poderemos afirmar que fizemos verdadeiros progressos em direção à igualdade, ao desenvolvimento e à paz”.
Por essa razão, esse tipo de violência é uma questão social vastamente debatida nas sociedades modernas. Ela poderá ocorrer por questões de ordem cultural ou até mesmo religiosa; e, está presente em vários países do mundo, representando a violação básica dos direitos fundamentais da pessoa humana. Em função disso, há várias leis, nacionais e internacionais, responsáveis em modificar esse tipo de discriminação e de violência doméstica contra a mulher, conseguindo identificá-las e puni-las nos rigores da lei (SOARES, 2017).
A lei “Maria da Penha” é considerada como uma das três mais leis avançadas do mundo, com relação à proteção da mulher, de acordo com o UNIFEM - Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher, órgão da ONU - Organização das Nações Unidas (CUNHA, 2017; UNALE, 2017). A presente legislação inova o conceito de família, apresenta novas formas familiares; protege às mulheres que vivem ou viveram essa situação de violência doméstica; previne-as de futuras agressões, com medidas protetivas de urgência; procura evitar os prejuízos iminentes; pune os devidos agressores; e, dá outras providências. Todavia, apesar dessa lei colocar o Brasil na vanguarda na defesa desse tipo de violência, ainda, grande parte dos direitos previstos nesse instrumento são desconhecidos pela maioria das mulheres e, por diversas instituições públicas e privadas. Por esse motivo, orientar e conscientizar esses atores desses direitos é indispensável, para que possam lutar mais efetivamente contra a violência doméstica e familiar que continua na época contemporânea (CANO; ASSUMPÇÃO FILHO, 2016).
1. História da Lei Maria da Penha
Maria da Penha Maia Fernandes, cearense, sofreu duas vezes tentativa de homicídio por parte do seu ex-cônjuge Marco Antonio Heredia Viveiros e se tornou um ícone de luta tanto da violência doméstica quanto da impunidade dos agressores. Sua vida conjugal foi permeada por diversas agressões verbais e físicas, que culminou no mês de maio 1983, com um tiro de revólver em suas costas enquanto dormia. Dessa primeira tentativa de homicídio ficou paraplégica e seu agressor alegou à polícia, que houve uma tentativa de roubo na residência do casal e os assaltantes, autores do disparo. Após sua recuperação hospitalar, que levou cerca de quatro meses, retornou à sua casa e veio a sofrer uma segunda tentativa de homicídio pelo marido. Tentou eletrocutá-la enquanto banhava-se, mas a babá das filhas apareceu ao ouvir seus gritos de pedido de socorro. Penha procurou a justiça, e sob a proteção de uma ordem judicial, deixou sua casa com as três filhas. Apesar de suas limitações físicas, iniciou uma guerra contra a violência doméstica e familiar da mulher. O inquérito policial, procedimento administrativo inquisitivo presidido pela autoridade policial com o objetivo de apurar as infrações penais, levou mais de um ano para que fosse apresentada a denúncia ao Ministério Público (ocorrência dos fatos 1984). O primeiro julgamento somente ocorreu após 8 anos e, o réu foi condenado a 10 anos de reclusão. Em 1991, ele recorreu da sentença e o julgamento foi anulado. No ano de 1996, ele foi condenado, com uma pena de 8 anos de reclusão em regime fechado. Mas, sua prisão se deu somente no ano de 2002, faltando 6 meses para a prescrição dos crimes. Cumpriu 1/3 da pena, equivalente a 2 anos. Atualmente, já se encontra em liberdade. Maria da Penha levou mais de 12 anos para conseguir a punição na justiça do seu agressor (PENHA, 2012; PORTAL BRASIL, 2017a & 2017b).
Durante o percurso dessa história, Penha escreveu a obra “Sobrevivi... posso contar”, que foi publicada no ano de 2010 (PENHA, 2010). Consoante Aderaldo (2017), o seu relato escrito, serviu para denunciar o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), devido não se ter conseguido uma punição do réu judicialmente, após tantos anos; e, em 2001, o Brasil foi condenado internacionalmente pela tolerância e omissão estatal, com que eram tratados os casos de violência contra a mulher pela justiça brasileira. Devido à repercussão internacional do caso, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, do governo federal do Brasil, encaminhou para o Congresso Nacional brasileiro no ano de 2004, proposta de lei para coibir a “violência doméstica contra as mulheres”. Em 7 de agosto de 2006 foi sancionada pelo presidente a Lei nº 11.340 e, em 22 de setembro, entrou em vigor. No dia 23 de setembro, o primeiro agressor foi preso com base na nova legislação. Maria da Penha levou mais de 12 anos para conseguir a punição na justiça do seu agressor.
2. Violência doméstica, agredida, agressor e motivos
O artigo 5º da lei define a “violência doméstica” como qualquer ato, omissão ou comportamento que cause violência física, psicológica, dano moral ou patrimonial, direta ou indiretamente, por meio de enganos, ameaças, coações ou qualquer outro meio contra a mulher, por pessoa em razão de seu vínculo de natureza familiar ou afetiva permanente, inclusive as esporadicamente as agregadas, os que vivem também na casa, como por exemplo, a empregada doméstica (BRASIL, 2006).
Por sua vez, a lei estabelece que a “pessoa agredida” precisa ser mulher, como por exemplo: a) esposa, companheira (união estável) ou amante, filha, neta; avó; empregada doméstica, quando presta serviço a uma família; mulher em união homoafetiva; b) mãe e filha, irmãs, namoradas, noivas (mesmo que não vivam na mesma casa), desentendimentos com agressão entre essas pessoas; c) pessoa portadora de deficiência física, independendo do seu sexo, que sofra lesão corporal; d) trânsgeneros, transexuais, travestis, que se identifiquem como sendo do sexo feminino. No tocante a “empregada doméstica”, para ser amparada pela Lei Maria da Penha, precisa obedecer os seguintes requesitos: sofrer a agressão na casa onde trabalha; fazer parte da relação doméstica familiar; e, necessariamente, conviver de forma continuada com a família. Caso contrário, qualquer empregada só por estar prestando serviços em uma unidade familiar e viesse a sofrer uma agressão, estaria amparada por essa lei. Por conseguinte, o trabalho da doméstica poderá ser examinado, ainda, por duas vertentes: a) quando trabalha todos os dias e mora no local de trabalho - a empregada tem a possibilidade de conviver mais tempo com os membros da família na casa onde está exercendo o seu trabalho e deverá ser considerada como parte integrante da mesma; b) quando trabalha todos os dias e não mora no local - será necessário comprovar a sua participação no “ambiente familiar”, ou seja, se está integrada como membro dessa família e se é considerada por esta e por si mesma, componente da presente instituição familiar. Com relação à “empregada diarista”, por trabalhar uma, duas ou três vezes por semana, não está protegida pela Lei nº 11.340/2006, devido a sua pouca permanência de trabalho na unidade familiar (BRASIL, 2006; DIAS, 2015).
Com relação ao agressor, ele precisa ser uma pessoa com quem a vítima está ou esteve em um relacionamento afetivo ou de convivência familiar. Portanto, pode ser um indivíduo, homem ou mulher, que não possua relação familiar com ela, mas deve “necessariamente” conviver com a vítima de forma continuada. Pode ser, por exemplo, mãe, pai, neto (a), qualquer parente que mantenha vínculo familiar, irmãs, irmãos, amante, marido, companheiro (união estável), patroa / patrão em face da empregada doméstica, mulher (homoafetiva) – em relação a companheira. O comportamento social do agressor é sempre agradável, encantador e sedutor em público, para que todos duvidem e não acreditem nos relatos e queixas da vítima. No que diz respeito a agredida, acaba sofrendo também preconceito e desrespeito pelas demais pessoas e da sociedade, porque acreditam que esse comportamento dele foi instigado por ela. Logo, o agressor não é o único responsável por esse tipo de violência, mas igualmente a sociedade, porque cultiva valores que incentivam e mascaram a violência contra a mulher. Consequentemente, essas condutas culminam protegendo a agressividade masculina, que está ligada em sua virilidade e imagem de superioridade, em relação à mulher. (ALFERES, 2016; SORDI, 2017).
Esse tipo de violência não se limita somente dentro de casa, porque pode se dar em qualquer lugar. O desejo dele é sempre sentir-se dono da situação, ter sua imagem superior em relação para com a “mulher-vítima”, e para isso, precisa dominá-la. Por essa razão, primeiramente procura isolá-la e mantê-la afastada dos amigos e da família; e posteriormente, vem à agressão física e a ofensa verbal, para destruir a sua autoestima. Além disso, institui a crítica destrutiva em tudo o que ela faz, afirmando, por exemplo, “que não faz nada certo”, “que não é boa mãe”, “não entende de nenhum assunto”, “é burra”, “não cuida bem da casa”, “não tem bom desempenho sexual” e, diversas outras frases e adjetivos, causando com esse tipo de conduta uma destruição moral e psíquica na vida da vítima. À vista disso, ela acaba sentindo-se uma pessoa “incapaz”, “inferior”, “insegura” e torna-se dependente da “vontade” e “decisões” do agressor, já que não consegue fazer nada correto. Muitas vezes, se questiona: “o que fez de errado”, para que ele haja dessa forma. Apesar disso tudo, encontra uma desculpa para aquela atitude “rude” e acaba sempre o desculpando, por exemplo, “ele anda muito estressado”. Para não desagradá-lo, prefere mudar sua forma de agir e assim, não usa mais maquiagem, as suas roupas são mais fechadas, torna-se uma pessoa muitíssimo mais tolerante e nunca diz “não” para ele. Ela está sempre assustada e não quer ver seu agressor bravo novamente, porque tem medo de sua reação e pensa que agindo dessa forma evitará uma nova agressão. Ele por sua vez, por não encontrar resistência sente-se mais fortalecido e com mais espaço para novas agressões (AMORIM; SOUTO, 2017; BARROS, 2017).
3. Família - ligações homoafetivas e de transgêneros
A Lei Maria da Penha veio amparar e proteger mais o sexo biológico da mulher e todos aqueles que se comportam como mulheres, no exercício do seu papel social. Por essa razão, essa legislação explicitamente aplica-se nas relações familiares homoafetivas e de transgenerismos. Nesta última, possui diversas formas, como por exemplo, “travestis”[1], “transexuais”[2], “crossdresser”[3], “drags”[4] , “intersexuais”[5], dentre outras. Visando a melhor compreensão desses novos tipos de vínculos afetivos, é necessário mencionar a distinção de “sexo” e “gênero”. Este último, se refere ao estado psicológico do indivíduo e que decorre dos aspectos sociais, culturais e também políticos; está mais ligado ao papel social que desempenha a pessoa; é uma formação que o cidadão constrói ao transcorrer de sua vida; e, por suas características biológicas; no que se diz respeito ao “sexo”, é determinado após o seu nascimento e, alude às características biológicas da pessoa, isto é, ser masculino ou feminino (BUTLER, 2003; MEYER; SOARES, 2012; NARDI; SILVEIRA; MACHADO; 2013).
Quando a lei menciona que a relação íntima de afeto independe da orientação sexual, concebe um novo “conceito de família” que foi considerada um avanço do legislador brasileiro. Em razão disso, na atualidade, a entidade familiar é vista mais como um núcleo de afetividade, que leva em consideração às relações heterossexuais (homem x mulher) e as “homoafetivas” (homem x homem; mulher x mulher). A família homoafetiva para ser amparada por essa lei precisa possuir uma relação fundamentada na afetividade e na intenção de ter uma vida em comum com fidelidade, durabilidade, continuidade e publicidade. Embora a lei seja destinada somente para os casos de violência contra a mulher, já há entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que essa proteção deve ser estendida também para os homens, mas para aqueles que estejam em relação homoafetiva e sejam vítimas de violência doméstica, com fundamento ao princípio constitucional de isonomia (inciso I do artigo 5º da Constituição Federal), a qual considera que os homens e as mulheres são iguais em direitos e obrigações perante a lei. Se a concepção de família foi ampliada pela Lei nº 11.340/2006 e, desde que sejam preenchidos os requisitos legais, estabelece-se a necessidade de tratamento igualitário entre homens e mulheres, vítimas da violência doméstica. Portanto, a regra é que se deve aplicar essa lei aos casais homoafetivos homens (BRASIL, 2006 & 2016; HOLANDA, 2015; SARLET, 2015).
No que concerne, as “ligações transgênicos” ou “ligações trans”, o ponto nevrálgico da questão, é que “ela” precisa se identificar como sendo do sexo feminino25. A lei protege a mulher, independente de sua orientação sexual (ex: travesti, transexual). O “trans” pode ter qualquer orientação sexual, podendo ser homossexual, ,heterossexual ou bissexual. A sua identidade de gênero, não corresponde ao seu sexo de nascimento; possuem características do gênero masculino ou feminino, mas em seu interior se sentem como do sexo oposto; e, eventualmente, se exteriorizam. Alguns passam por intervenção cirúrgica para redefinição do seu sexo; e, outros, recebem somente um tratamento hormonal (PRESSE, 2017).
4. Formas de violência doméstica, direitos e penalização
Segundo Hermann26, o artigo 7º da lei apresenta um rol exemplificativo das formas de violência doméstica, com o objetivo de traçar “algumas” dessas situações gerais, que estimularão as ações protetivas e preventivas, previstas legalmente, que são: a) “violência física” – ocorre quando a pessoa é prejudicada na sua integridade ou saúde corporal; por meio do uso da força física, armas e objetos, por exemplo, tapas, chutes, cortes, arrancar a roupa, lesões por armas ou objetos, omissão de cuidados; b) “violência sexual” – acontece quando uma pessoa, com o emprego de qualquer conduta, força outra pessoa a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante ameaça, chantagem, suborno ou manipulação. A vítima casada ou em união estável, não é obrigada a manter relações sexuais com o marido ou companheiro (a); c) “violência psicológica” - existe quando se verifica qualquer ação do agressor com a intenção de provocar um dano emocional e diminuição da autoestima da vítima, com o fim de controlar o seu comportamento e decisão. Exemplificando: por meio de ameaça, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, insulto, chantagem, ridicularizarão ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e ao seu desenvolvimento, que a título de exemplo, pode ser insultos constantes, humilhação, desvalorização, isolamento de amigos e familiares, impedimento de trabalhar; d) “Violência patrimonial” – existe quando o agressor toma ou destrói os objetos da vítima, seus instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. Pode ocorrer ainda transferência de seus bens ao agressor e muitas vezes, pode ocorrer por coação ou indução a erro; e) “violência moral” - atinge a honra e a imagem da vítima. São os crimes contra honra previstos no Código Penal: calúnia (artigo 138) - “Caluniar alguém, impuntando-lhe falsamente fato definido como crime” (ex: agressor chama a mulher de ladra sem provas); difamação (artigo 139) – “Difamar alguém, impuntando-lhe fato ofensivo à sua reputação” (ex: agressor diz em público que a vítima é uma “safada”); e, injúria (artigo 140) – “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade e o decoro”. A dignidade de uma pessoa é o sentimento que ela tem sobre sua moral, comportamento, qualidades físicas e intelectuais, a título de exemplo, o agressor ofende a vítima de “vagabunda”, “sem-vergonha” (BRASIL, 2006 & 2017a; CUNHA; PINTO, 2015).
A vítima de agressão doméstica para ser amparada pela Lei Maria da Penha precisa obedecer a um desses seguintes requisitos: 1) ocorrer o fato no espaço da “unidade doméstica” - local de convívio permanente do agressor e agredido, exemplo, empregada doméstica; agregado (aquele que vive na casa da vítima por certo período de “favor”); 2) acontecer à violência no âmbito da “família”, que para lei é um grupo de indivíduos que são ou se consideram aparentados: a) unidos pelos laços de vontade expressa - adoção, conjugal; b) naturais - pais, irmãos e filhos; c) afinidade - indivíduos que se consideram aparentados; d) homoafetiva - união de pessoas entre o mesmo sexo – mulheres; e) família paralela - quando o homem mantém duas famílias; 3) desenrolar o ato de agressão, em qualquer “relação íntima de afeto”, isto é, a qual está inserida em um relacionamento estreito entre duas pessoas e fundadas em laços de amor, companheirismo, amizade, independentemente da orientação sexual; 4) a vítima precisa estar convivendo ou ter convivido com o agressor; 5) não precisam estar morando juntos para se caracterizar a violência doméstica, mas que tenham ou tenham tido o vínculo de natureza familiar (BRASIL, 2006; BROSTOLIN, 2014).
Em concordância com o Conselho Nacional de Justiça, uma das formas de coibir a violência doméstica e proteger suas vítimas, de acordo com a Lei nº 11.340/2006, é aplicar as medidas protetivas de urgência, que procuram evitar prejuízos iminentes e, serão utilizadas após a apresentação da “queixa de agressão” na Delegacia de Polícia, que encaminhará em 48 horas ao juiz o pedido dessas medidas de urgência. Em igual prazo, caberá ao juiz determinar a execução desse mecanismo: se a medida vai ser aplicada ou não. Nos casos de agressões físicas, a agredida não poderá mais “desistir da queixa” e o processo deverá seguir o seu trâmite legal, independentemente de sua vontade, até a sentença (BRASIL, 2006; CNJ, 2017).
Nos outros tipos de violência doméstica (ex: ameaça), caso ela queira reconsiderar sua “queixa”, conseguirá fazê-lo somente na presença do juiz em audiência. Ele com a finalidade de garantir a proteção da agredida e o bom andamento processual poderá: a) decretar da prisão preventiva do agressor para assegurar o bom andamento do inquérito policial, do processo criminal e da execução das medidas protetivas de urgência; b) informar sempre à vítima das medidas de prisão ou de soltura do agressor, para que a mesma possa ter condições de se prevenir da nova realidade; c) encaminhar à agredida e seus dependentes, ao programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; d) designar a recondução deles ao domicílio, após o afastamento do agressor; e) determinar a retirada da vítima do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e recebimento de pensão; f) requisitar, a qualquer momento, o auxílio da força policial para garantir a execução das medidas protetivas; g) se ocorrer violência sexual, a mulher tem o direito aos “serviços de contracepção de emergência”, para evitar uma possível gravidez indesejada; a prevenção de (DST) - Doenças Sexualmente Transmissíveis e da (AIDS) - Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; possui o direito de outros procedimentos médicos que se façam necessários. Comprovada a culpa do agressor, deve comparecer, obrigatoriamente, a programas de recuperação e reeducação; e, é proibido aplicar penas de cesta básica ou de substituição da pena, na qual implique o pagamento isolado de multa (BRASIL, 2006; ALFERES, 2016; CNJ, 2017).
Embora, tenha havido uma diminuição do número de agressões contra as mulheres no âmbito doméstico, desde a aprovação da Lei Maria da Penha, que providenciou as medidas protetivas de urgência, por sua vez, não houve diminuição da morte de mulheres nos casos em que envolviam a violência doméstica e familiar. Pelo contrário, houve um aumento, e por esse motivo, existiu a necessidade de se tornar essa lei mais grave (WAISELFISZ, 2015). Por isso, em 9 de março de 2015, foi sancionada a Lei nº 13.104, com a criação de um novo tipo penal, o “feminicídio”, que veio enrijecer as penas de homicídio praticado contra a mulher por razões de gênero e tentar reduzir os casos de impunidade. É uma circunstância qualificadora incluída (inciso VI) no crime de homicídio (artigo 121, parágrafo 2º), Código Penal. O parágrafo 2º, desse inciso, esclarece que esse tipo de homicídio contra a mulher consiste em “matá-la por razões de ser da condição de sexo feminino” e precisa ser o crime: a) de violência doméstica e familiar (inciso I) ou b) de menosprezo ou discriminação à condição da mulher (inciso II). Portanto, não basta apenas ser mulher, para ocorrer esse tipo de crime, mas precisa atender um dos dois requisitos legais (inciso I ou II). Dessa forma foi alterado o Código Penal e na mesma ocasião, também a Lei nº 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos), para incluir o “feminicídio” no rol dos crimes punidos com maior rigor penal. Em resumo, trata-se de um crime voltado para o gênero; de ódio, repulsa contra tudo que é ligado ao sexo feminino; hediondo; inafiançável; homicídio de forma qualificada; com pena de reclusão de 12 a 30 anos; pena, podendo ser aumentada se ocorrer: na presença de descendente ou ascedente da agredida; com pessoa menor de 14 anos ou maior de 60 anos ou com deficiência; e, durante a gestação ou ocorrer nos 3 meses pós-parto (BRASIL, 2006 & 2017a; CUNHA; PINTO, 2015).
O autor do crime de feminicídio pode ser homem ou mulher, mas obrigatoriamente a vítima é mulher, independentemente da sua faixa etária. Dessa maneira, continuará sendo homicídio o homem que mata seu companheiro homoafetivo. Ensina Barbosa (2017) não imputar esse crime para os “homossexuais”, “travestis”, porque o sexo biológico deles é masculino e eles continuam a serem homens. E, em relação aos “transexuais”, que realizaram a cirurgia de transgenitalização ou de redesignação sexual, existe a mudança do aparelho sexual, mas somente ocorrem alterações estéticas e não genéticas. Mesmo após a cirurgia continua a ser uma pessoa do sexo masculino. Os procedimentos cirúrgicos consistem na neocolpovulvoplatia (mudança da genitália masculina para a feminina; é amputado o pênis, retirado os testículos e faz-se uma cavidade vaginal); e, neofaloplastia ou falosplastia (é a operação inversa, envolve a construção de um pênis e anexá-lo à área vaginal). Após a mudança do sexo, poderá requerer alteração de nome e de sexo na documentação, mas para o crime de feminicídio não é considerada mulher, porque o seu sexo biológico continua a ser masculino e não atende um dos requisitos desse crime (CURY, 2012; BRASIL, 2017c).
Explana Eluf (2017), que o morticínio de mulheres por motivos passionais de gênero, resultante de violência doméstica, é gigantesco no Brasil; e, nova figura penal, feminicídio, veio esclarecer que essa “mulher” assassinada, não teria morrido na mesma circunstância, se não fosse “mulher”; tendo portanto, a função esclarecedora, inibidora, educativa e elucidativa, ao tornar visível e estatisticamente computável, algo que estava oculto sob o manto da palavra genérica “homicídio”; e ainda, dessa forma, se consegue escancarar a violência de gênero e aumentar o rigor punitivo, medida importante na intimidação do agressor. Se concluiu que, os maiores genocídios da história não precisaram de mísseis, pois os homens tornaram-se armas de destruição massiva em relação às mulheres. Verifica-se que os efeitos da cultura patriarcal são tão destruidores que se trava no mundo uma verdadeira e continua guerra de homens contra mulheres. Em vista disso, o novo tipo penal inserido no ordenamento jurídico brasileiro, tem a função esclarecedora e inibidora, educativa e elucidativa, ao tornar visível e estatisticamente computável algo que estava oculto sob o manto da palavra genérica “homicídio”.
5. Despenalização da violência doméstica na Rússia
O presidente da Rússia Vladimir Putin, promulgou em 7 de fevereiro de 2017, a polêmica norma que flexibilizou a atual lei de violência doméstica e resultou na descriminalização da violência doméstica contra a mulher e a criança. Atualmente, as agressões que não causem “sérios danos à saúde da vítima” deixaram de ser tipificadas como crime; os instrumentos jurídicos para a defesa da agredida foram limitados; e, houve a redução da pena aos agressores. Dado isso, a nova lei comporta as seguintes novidades: a) “danos à saúde”, significado para atual norma, são impactos duradouros à saúde da vítima que exigem tratamento hospitalar; b) as agressões que causem dor física, mas não lesões e, resultem apenas em hematomas, arranhões, sangramentos, ferimentos superficiais são classificados como de “efeito não duradouro”, não são criminalizados e serão considerados uma falta administrativa, se for a primeira agressão; c) nessa fase os agressores não sofrerão reclusão; d) para a falta administrativa, a pena poderá ser a prisão de 10 a 15 dias ou multa de 30 mil rublos (€ 470) ou serviço comunitário obrigatório pelo período de 60 a 120 horas; e) se o agressor reincidir na agressão do mesmo familiar, no prazo inferior de um ano, enfrentará um processo criminal, independentemente do tipo de agressão e, se condenado, sofrerá pena de reclusão, mas para isso, a vítima sempre terá que provar os fatos, porque a justiça não age de ofício (iniciativa própria) para investigar as acusações, apenas mediante as provas coletadas e apresentadas pela vítima (ESTADÃO, 2017; OLIVEIRA, 2017; VEJA, 2017).
Essa lei recebeu diversas críticas internacionais. Inclusive, a população e dos ativistas russos de direitos humanos, por considerarem que essa norma legal destrói a luta contra a violência doméstica na Rússia. Sobre esse tipo de violência no país, a agência nacional estatística russa registrou no ano de 2015, 49.579 casos, sendo 35.899 somente de violência contra mulheres; também nesse ano, foi apurada pela Associação Anna Akhmatova - Ahha Axmatoba – (ANNA), a qual apoia mulheres vítimas de violência, que aproximadamente 7.500 mulheres russas, morreram nas mãos de seus parceiros; e, ainda, consoante pesquisas de ONGs russas, a cada 40 minutos, uma mulher morre no país vítima de violência de gênero (FOLHA, 2017; O POVO, 2017).
A violência doméstica é um problema que existe em todos os países e o óbice maior para solucionar a questão, está no medo em que as mulheres possuem em denunciar o seu agressor para a polícia. Essa lei é um retrocesso nos direitos humanos adquiridos pela mulher russa, principalmente, quando o parlamento russo fundamenta sua decisão de “apenas” quererem descriminalizar “as agressões que não causarem danos à saúde” das vítimas. É muito preocupante e temerária essa decisão, já que viver sem violência é um direito de qualquer ser humano e o legislador não poderia retirar direitos adquiridos e criar uma exceção, com a perspectiva de piorar a situação dessa população feminina. A vítima precisa saber que existem leis e políticas públicas que podem ampará-la na sua defesa (EFE, 2017). Conforme Robinson (2017 apud OLIVEIRA, 2017) é de domínio público mundial, que no flagelo da violência doméstica a criminalização é indispensável no combate à violência intrafamiliar, seja da mulher, de crianças, jovens, pessoas com deficiência e idosas, porque a impunidade cultiva a tolerância social com a violência (relatora sobre os Direitos das Mulheres da Organização dos Estados Americanos). Ainda nesse sentido, afirma a porta-voz da ONU mulheres no Brasil, Gasman (2017 apud SOARES, 2017) “A violência contra mulheres é uma construção social, resultado da desigualdade de força nas relações de poder entre homens e mulheres. É criada nas relações sociais e reproduzida pela sociedade”. Portanto, o trabalho contínuo contra esse tipo de violência é de suma importância, por se tratar de um grave problema social a continuar e persistir sua existência ainda no século XXI.
Considerações Finais
A Violência contra Mulheres é uma das violações dos direitos humanos mais praticadas e menos reconhecidas no mundo. É um fenômeno cultural, histórico, que atravessa gerações, atingindo todas as classes sociais e raças. Ao longo do tempo se operou no Brasil uma profunda transformação em sua estrutura legislativa, que permitiu a criação de mecanismos para a tutela jurídica da mulher em face a violência doméstica. Apesar da existência de algumas leis infraconstitucionais, dentre elas a lei Maria da Penha, que torna mais visível esse fenômeno, o país continua a possuir uma carência normativa para realizar tanto a proteção necessária para a mulher quanto o cumprimento das leis. O desafio emergente a ser superado é o envolvimento da sociedade e das instituições públicas e privadas com essa questão, uma vez que, os índices desse tipo de violência são tão altos quanto crescentes no país e, a negligência dos poderes públicos é muito perceptível. Todas as mulheres tem o direito de viverem uma vida isenta de violência e só poderão vivê-la corretamente, quando estiverem adequadamente informadas dos seus direitos e da forma de obtê-los. A imprensa possui um papel altamente relevante nessa questão, porque pelos meios de comunicação existentes, há a capacidade de informar e divulgar à sociedade, a verdadeira realidade da violência doméstica contra as mulheres e descortinar os instrumentos legais, com a finalidade de efetivar a prevenção, precaução e defesa delas, que muitas vezes, não tem outro meio de acesso à informação e cultura senão por aquela que lhe chegam pelos meios da mídia. Dessa maneira, elas terão instrumentos para garantirem a efetividade das leis e terem uma possibilidade real de romperem com o ciclo de violência a que estão submetidas, que podem até a levarem à morte.
Referências
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ALFERES, E. H. Lei Maria da Penha Explicada. São Paulo: Edipro, 2016, p.112.
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Notas
[1] Travestis - indivíduos que se vestem com roupas do sexo oposto e também, por exemplo, tem a voz, o corpo, mas continuam ao seu sexo biológico de nascimento. Eles convivem bem com os seus genitais, mas modificam o corpo para terem uma aparência mais feminina (BUTLER, 2003; NARDI; SILVEIRA; MACHADO, 2013);
[2] Transexuais - pessoas que possuem o seu sexo biológico, nasceu como homem ou mulher, não estando de acordo com o sexo psicológico. Buscam cirurgia para mudança de sexo, porque expressam desgosto sobre os seus genitais (BUTLER, 2003; NARDI; SILVEIRA; MACHADO, 2013);
[3] Crossdresser - pessoa de um sexo, mas se veste de outro, mas não assume publicamente uma identidade social feminina. Não fará uso de hormônios e nem de cirurgias corretivas em seu corpo, pois em sua rotina diária, tem uma vida condizente com o seu sexo biológico. Podem ter tendência hetero, homo ou bissexual (BUTLER, 2003; NARDI; SILVEIRA; MACHADO, 2013);
[4]Drags – podem ser homens, que se vestem de mulheres (drag queens) ou mulheres, que se vestem de homem (drag kings). O que realça essa particularidade na sua maioria é o exagero das vestimentas e, no seu cotidiano não se vestem assim (BUTLER, 2003; NARDI; SILVEIRA; MACHADO, 2013);
[5]Intersexuais - chamados de “hermafroditas”, tem presente a genitália masculina e feminina. É uma condição biológica, nasceram com os dois sexos. Não é fácil determinar a sua tendência sexual (BUTLER, 2003; NARDI; SILVEIRA; MACHADO, 2013).
Helena Maria de Godoy Martinho
Graduação em Direito-Universidade Presbiteriana Mackenzie; Pós-Graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito EPD; Mestre em Saúde Ambiental - Faculdades Metropolitanas UnidasFMU
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