Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

sábado, 24 de junho de 2017

Drauzio Varella: “Todas as mulheres são prisioneiras”

Em seu novo livro, Drauzio Varella revela a convivência com as detentas que atende. O relato sensível mostra, nas entrelinhas, a faceta feminista do médico

Por Sandra Soares  23 jun 2017

“Onde vocês querem se sentar para a entrevista? E a foto? Vamos tirar em que canto?”, pergunta, com gentileza e alguma pressa, o médico Drauzio Varella, 74 anos, em seu aconchegante escritório, localizado na Bela Vista, em São Paulo. Estamos no meio do dia e a agenda dele ainda irá longe. Mas a urgência desaparece assim que a conversa se inicia. Ele é todo ouvidos, mostra-se 100% presente – uma das estratégias para não perder tempo. Afinal, precisa otimizá-lo para conciliar suas inúmeras facetas: a de oncologista (seu consultório fica no andar de baixo do mesmo prédio), escritor (12 livros publicados), maratonista e comunicador (mantém um quadro no Fantástico, uma coluna na Folha de S.Paulo e um site com seu nome). Ele diz, no entanto, que ser médico voluntário em cadeias é o que o humaniza. “Não é um trabalho que eu faça por razões ideológicas ou religiosas, mas porque gosto”, afirma. Prisioneiras (Companhia das Letras), lançado no fim do mês passado, completa uma trilogia sobre o universo prisional, com Estação Carandiru (1999) e Carcereiros (2012).

Dos 28 anos atendendo no cárcere, os últimos 11 foram dedicados à Penitenciária Feminina da Capital, onde vivem 2 mil detentas. Logo que chegou lá, Varella percebeu que teria de esquecer tudo o que aprendera em prisões masculinas. “Nas mulheres, as emoções entram em jogo com o mesmo peso da racionalidade”, conta. Veja trechos da conversa:

Desde 1989, o senhor atende em presídios. Qual é a motivação para continuar esse trabalho?

Se eu parar, minha vida pessoal empobrece. Tenho pensado em voltar à cadeia de homens, na verdade. A convivência com eles me dá uma ideia melhor da sociedade brasileira e me lembra da vida real – a vida dura da maior parte da população. As cadeias vão mudando. Se você fica muito tempo longe, perde o contato com isso.

O que mudou no sistema prisional?

Quando comecei, o Brasil tinha 90 mil presos. Hoje são 650 mil. Para acabar com a superpopulação, o Estado teria de construir 90 presídios e, a partir daí, manter o equilíbrio do sistema: uma nova cadeia a cada mês. Essa situação vai piorar porque não há empregos. Na classe média alta, não existem tantos jovens na criminalidade, pois eles contam com outras oportunidades. Eu gravo programas nas periferias. Vejo sempre uma molecada nas esquinas fumando maconha. São os “nem-nem”, que nem estudam nem trabalham. Falo com eles. O assunto é boné, óculos escuros, cordão, moto, jeans de marca. E como é que o moleque vai ter acesso a essas coisas se não estudou, não tem trabalho? Com o tráfico. Tem meninas na cadeia que ganhavam 50 mil, 60 mil reais por mês. Uma me contou que ganhava 80 mil reais.

No livro, o senhor relata que a maioria das presas tem menos de 25 anos e é mãe.

Sim, são muito jovens. Algumas dizem: “Olha, eu não estou vendo os meus filhos crescerem, mas vou sair daqui e acompanhar meus netos”. Elas já têm netos! Mais da metade da natalidade brasileira vem das classes D e E. Nasce hoje uma massa de crianças que encontrará escola de má qualidade, habitação inadequada, estrutura familiar desorganizada e conviverá com pessoas sem estudo. É uma guerra perdida. A desigualdade só vai piorar. Ninguém, nem da esquerda nem da direita, quer tratar da natalidade.

O que a prisão provoca nelas e que não ocorre com os homens?

Mais da metade das mulheres assume na cadeia um comportamento homossexual. Cerca de 15% cortam o cabelo baixinho e se apresentam com nome masculino. Nunca vi um homem adotar aparência feminina na prisão. Os travestis já chegam assim. A homossexualidade está mais próxima da alma feminina. Como não existe penetração, uma não se sente diminuída diante da outra. Entre os homens, alguém sempre ficará em situação inferior. Na prisão, aquele que penetra não é considerado homossexual. Já o que é penetrado passa a ser chamado de mulher de cadeia. É condenado a não fazer nada. Não pode sequer distribuir a refeição.

Como os travestis sobrevivem dentro dos presídios?

Acho que usando armas masculinas e femininas ao mesmo tempo. Travestis e transexuais conhecem o sofrimento cedo. Não há números oficiais, mas sabe-se que o suicídio na população trans não é um acontecimento ocasional. Nossa sociedade não admite que uma pessoa tenha comportamento sexual em dissonância com a anatomia dos órgãos sexuais. Voltando às mulheres: elas encontram na prisão a possibilidade de, finalmente, se expressar.

Por quê?

De certa forma, todas as mulheres são prisioneiras, a despeito de todas as conquistas feministas. As detentas, antes de tudo, são prisioneiras da situação que a mulher enfrenta. Sobre a pobre pesa o lado mais cruel do machismo; é explorada e aviltada. A mais privilegiada se defende melhor, trabalha, tem renda. A da camada humilde está na mão do homem, é sempre abandonada, fica responsável pelos filhos e sem ajuda. O homem tem três, quatro filhos com ela e, quando essa mulher atinge 30 ou 35 anos, ele a troca por uma de 15 e desaparece. Na periferia, não consigo encontrar homens em casa. Ali, a família típica tem a avó, suas filhas e uma criançada.

Por que homens não visitam mulheres nos presídios? Cuidar e solidarizar-se é papel feminino?

Em 50 anos de medicina, se vi seis homens sozinhos na sessão de quimioterapia foi muito. A mulher está junto, toma providências, conta sobre o aparecimento dos sintomas dele. No hospital, só encontro mulheres à beira da cama dos doentes. Enquanto estiver preso, o homem receberá a visita da esposa, da mãe, da namorada, da prima. Já a mulher é esquecida. A família tem vergonha da presa. Raras recebem visita íntima do parceiro.

O senhor analisa tudo com base na ciência, nas estatísticas. Foi isso que o deixou mais distante de crer em Deus?

Sou ateu desde criança. Fiz a primeira comunhão, mas nunca consegui acreditar. Em religião, não se trata de provar a existência de Deus, mas de manter a fé nele. Tenho dificuldade de crer no que não apresenta lógica. Um ser que controla 7 bilhões de pessoas na Terra, que interfere na vida delas… Não tem lógica, né? Deus vem do medo de encarar a nossa finitude. É um jeito de lidar com o mistério do nascer e morrer.

Já estive perto da morte algumas vezes. Há 13 anos, quase morri em decorrência de febre amarela. Se tivesse acontecido, ao menos eu não teria partido com aquela frustração de não ter realizado algo importante.
   
Como se tornou ateu?

É uma história boba… Aos 10 anos, para a primeira comunhão, ganhei um terninho branco de linho. Fiquei orgulhoso. Na aula de catecismo, a professora explicou que não se devia mastigar a hóstia, que era o corpo de Cristo. Ela contou a história de um menino francês que desrespeitou a recomendação e ficou com a boca cheia de sangue. Achei esquisito: “Como algo feito de farinha sangraria?” Decidi tirar a prova, mas não tive coragem por medo de sujar o terno. Pouco tempo depois, mordi a hóstia. E nada aconteceu. Virei ateu, oficialmente, nesse momento (risos).

É mais fácil encarar a morte, o fim de tudo, sendo ateu?

Os ateus lidam bem com essas questões, aceitam melhor a realidade. Trabalhar com oncologia me ajuda a entender que o meu tempo não é infinito. A vida pode acabar de uma hora para outra; é importante que eu a aproveite e busque a felicidade. Já estive perto da morte algumas vezes. Há 13 anos, quase morri em decorrência de febre amarela. Se tivesse acontecido, ao menos eu não teria partido com aquela frustração de não ter realizado algo importante.

Quando descobriu que queria ser médico?

Desde pequeno, ser médico me parecia algo tão natural quanto ser homem. Talvez isso esteja ligado ao fato de minha mãe ter ficado doente no nascimento do meu irmão, dois anos mais novo que eu. Morávamos todos em um único quarto. Convivi de perto com a enfermidade dela (miastenia, doença autoimune que enfraquece os músculos). Minha mãe morreu quando eu tinha 4 anos.

De que forma concilia todas as suas atividades?

Nunca perco tempo (risos). Preciso encaixar algumas coisas às 5 da manhã. É nessa hora que corro de 10 a 20 quilômetros, o que faço três vezes por semana.

Como consegue não perder tempo?

Recuso convites de eventos para jogar conversa fora. Prefiro sair e jantar com amigos ou ir à casa deles. Gostaria de escrever mais. O problema é cortar alguma coisa da lista.

O senhor ainda faz cursos de teatro? Foi assim que conheceu sua mulher, não?

Eu me matriculei porque tinha me separado, andava deprimido, e seria bom fazer algo diferente. Mas nunca tive a pretensão de ser ator. Conheci a Regina (Braga, atriz, 71 anos), que era a professora. Começamos a namorar e estamos juntos até hoje (há 36 anos).

Nenhum comentário:

Postar um comentário