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sexta-feira, 23 de junho de 2017

Estado negligente estimula escalada da violência doméstica, aponta relatório sobre Roraima

Uma pesquisa da Human Rights Watch realizada em Roraima – o Estado brasileiro com maior taxa de homicídios de mulheres – revelou a ineficácia do poder público em cumprir suas próprias legislações e garantir os direitos das mulheres, em um cenário de negligência e omissão que permite a escalada da violência doméstica e familiar em muitos casos.
(Débora Prado/Agência Patrícia Galvão, 21/06/2017)
Com 26 páginas, o relatório ‘Um dia vou te matar’: impunidade em casos de violência doméstica no estado de Roraima foi lançado nesta quarta-feira (21/06) na sede da organização internacional de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch em São Paulo. A publicação descreve os graves problemas encontrados no estado, que refletem as mesmas falhas observadas em todo o país para que haja de fato acesso à justiça e proteção contra a violência. “Muitas mulheres em Roraima sofrem abusos, violências e agressões durante anos antes de procurar a polícia. E, quando o fazem, a resposta das autoridades é péssima”, destaca a diretora da Human Rights Watch no Brasil Maria Laura Canineu.
Segundo a diretora, o Brasil conquistou importantes avanços legislativos desde que a organização fez seu primeiro estudo sobre a violência contra as mulheres no país, em 1991, como a promulgação da Lei Maria da Penha, hoje tida como uma referência para outros países, e a tipificação do feminicídio no Código Penal. “Mas esses direitos ainda não são realidade, há muitas falhas em todo o país”, ressalta.
“O que vimos em Roraima não é novo, é o que outros estudos já apontam como um padrão no Brasil. Vimos a violência doméstica e familiar atingir mulheres de todas as classes, idades e cores. Vimos que elas sofrem abusos por muitos anos antes de procurar ajuda e que a escalada da violência é frequente. Os filhos, em muitos casos, também são vítimas, seja por testemunharem a violência contra a mãe ou por também sofrerem diretamente agressões. E a resposta do Estado é decepcionante”, descreve César Muñoz Acebes, pesquisador-sênior da organização, que atuou na pesquisa e realizou levantamentos e diversas entrevistas em Roraima.
Falta capacitação e serviços, sobra machismo
Os problemas identificados no estudo passam por fatores estruturais, como a necessidade urgente de expansão das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM) em Roraima, uma vez que atualmente existe no estado apenas uma unidade, localizada na capital Boa Vista, a centenas de quilômetros de algumas comunidades.
Além de ser responsável por atender todas as 255.000 mulheres de Roraima, esta única DEAM só funciona de segunda a sexta e durante o horário comercial. “As delegacias precisam estar abertas nos horários de maior incidência da violência doméstica e familiar, que sabemos ser muito frequente à noite e nos finais de semana”, reforça a diretora da Human Rights Watch no Brasil, Maria Laura Canineu.
Os obstáculos passam também por práticas discriminatórias e violadoras de direitos, que revelam a banalização e desconhecimento sobre a violência de gênero pelos profissionais que atuam nos serviços e a omissão e negligência de suas instituições.
A pesquisa encontrou, por exemplo, casos em que a autoridade policial se recusou a registrar o boletim de ocorrência a partir da denúncia de crimes pelas mulheres nas delegacias não especializadas. Foi o que aconteceu com Priscila, um dos 31 casos documentados pela Human Rights Watch no estudo:

“Durante oito anos, Priscila, 42, sofreu com frequência agressões físicas e violência verbal do parceiro. ‘Lais’, a filha de 13 anos de Priscila, testemunhou a violência. Na noite de sábado de 3 de dezembro de 2016, o parceiro de Priscila a arrastou para fora de casa e, segundo Lais, agrediu-a na cabeça, no rosto e no braço, no meio da rua. Ele parou apenas quando o filho de Priscila se colocou na frente dele para proteger a mãe. Lais chamou a polícia militar, que veio, mas nada fez. Às 3h da manhã de domingo, Priscila e Lais caminharam por uma hora para chegar a uma delegacia de polícia não especializada. Um policial lhes disse que deveriam esperar até segunda-feira para fazer a denúncia da agressão na delegacia da mulher.”

Lacunas no primeiro atendimento e medidas protetivas
O relatório descreve ainda outros sérios obstáculos para o acesso à justiça, como boletins de ocorrência que não são investigados e, quando são, inquéritos que não são concluídos, arrastando-se por anos até a prescrição dos crimes. Além disso, muitas vezes, sequer o depoimento da vítima é tomado quando a mulher busca a delegacia; e quando isso ocorre, ela tem que fazer o relato das violências sofridas na recepção do equipamento, diante de outras pessoas, ou seja, sem nenhuma privacidade.
“O comum é se fazer um resumo de um ou dois parágrafos do que a mulher relatou no BO e o policial diz que irá ligar pra pegar o depoimento depois. Muitas vezes, porém, os policiais não ligam por falta de efetivo ou ligam, mas algum tempo depois, e a mulher, ameaçada, já mudou o telefone. Esse seria um problema muito fácil de resolver, é possível pegar o depoimento da vítima ali na hora e inclusive, muitas vezes, já colher o depoimento de testemunhas também, pois é comum parentes e amigos que sabem da violência acompanharem a mulher nesse momento”, explica o pesquisador da Human Rights Watch.
A falta de informações sobre o caso se traduz também em dificuldades de acesso às medidas protetivas de urgência – mecanismo previsto na Lei Maria da Penha para que se adotem ações para preservar a integridade física e psicológica das vítimas, como afastar o agressor. Essas ações precisam ser adotadas rapidamente em uma situação de emergência e, portanto, as medidas protetivas devem ser aplicadas de modo independente de procedimentos mais demorados, como a instauração de inquéritos ou o desenrolar de um processo penal.
“Faltam informações básicas nos pedidos de medidas protetivas, o que dificulta a sua expedição”, aponta César Muñoz . Além disso, quando concedidas, as medidas muitas vezes não são fiscalizadas, já que somente na capital, Boa Vista, há uma Patrulha Maria da Penha, ou seja, lá existe um efetivo da guarda municipal dedicado a acompanhar as mulheres com a proteção.
“Os obstáculos encontrados pelas mulheres geram uma sensação de impunidade que permite a escalada da violência, o que sabemos pode chegar ao feminicídio”, aponta o pesquisador da organização.
De acordo com o relatório, em todos os casos estudados as mulheres afirmaram ter sofrido violência psicológica. Em 19 dos 31 casos, a violência psicológica escalou para violência física, incluindo cinco casos de violência sexual. A publicação informa ainda que Roraima chegou a registrar uma taxa de 11,4 homicídios por 100 mil mulheres em 2015, enquanto a média do Brasil é de 4,4 assassinatos para cada 100 mil mulheres – o que já representa uma das maiores taxas no mundo.

Recomendações

Diante do cenário de violações, a Human Rights Watch incluiu recomendações aos serviços de Roraima e ao Estado brasileiro no relatório. Confira um trecho da publicação:
“Roraima, e todo o Brasil, precisam fazer muito mais para responder ao grave problema da violência doméstica. Para entender melhor a sua dimensão, a polícia e o sistema de justiça em Roraima e nos outros estados devem começar a coletar e publicar dados abrangentes sobre o número de ocorrências registradas, investigações, casos em que há oferecimento de denúncia, processos judiciais e os resultados desses processos, assim como o número de homicídios de mulheres e quantos são possíveis feminicídios conforme a definição da lei brasileira.
É crucial que as autoridades reduzam os obstáculos que as mulheres e meninas enfrentam para fazer suas denúncias. Para tanto, Roraima deve expandir sua delegacia da mulher, em número de funcionários e no horário de funcionamento. As autoridades do estado devem garantir que todas as delegacias tenham salas que forneçam privacidade e confidencialidade às vítimas.
Os policiais civis devem realizar as oitivas completas das vítimas de forma imediata quando elas forem a qualquer delegacia e devem fazer investigações completas e rápidas de todas as denúncias. Para atender a esses padrões básicos, será necessário treinamento especializado para policiais civis e militares que lidam com casos de violência doméstica, e a criação de protocolos escritos detalhados sobre como atender ligações de emergência e como registrar e processar as ocorrências e pedidos de medidas protetivas das mulheres.
As corregedorias devem disciplinar policiais que não cumprirem os regimentos e protocolos internos, a Lei Maria da Penha e outras legislações ao lidar com casos de violência doméstica. Os defensores públicos e, especialmente, os promotores, devem notificar as corregedorias sobre casos de negligência policial.
Além disso, a Defensoria Pública deve designar pelo menos mais um defensor público para representar as mulheres em casos de violência doméstica no estado de Roraima, sobretudo aquelas que vivem fora de Boa Vista e que atualmente teriam que viajar até a capital para ter acesso a esses serviços. Por fim, o poder judiciário em Roraima deve trabalhar com as autoridades municipais e estaduais para garantir que a guarda municipal ou a polícia militar monitore todas as medidas protetivas.”
Acesse o relatório na íntegra e confira o vídeo da organização sobre a publicação:

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