9 DE JUNHO DE 2017
Papéis de gênero ainda influenciam as escolhas profissionais, mas presença feminina está em ascensão em formações e carreiras tidas como masculinas.
Por Mariana Bastos*
"Quero ver bater uma laje". "Quero ver trocar pneu". Essas são frases comumente usadas por homens na internet para desqualificar mulheres que exigem equidade de direitos. O que poderia soar como ofensa tornou-se, na verdade, um nicho de mercado para algumas delas. Hoje, elas ocupam cada vez mais espaços profissionais que antes eram considerados masculinos.
Foi mexendo com argamassa que Paloma Cipriano se tornou um fenômeno da internet. A mineira de Sete Lagoas, que havia feito na adolescência um curso de alvenaria, resolveu reformar seu próprio quarto. Sua mãe lhe sugeriu que gravasse esse processo e criasse tutoriais. Seus vídeos logo ganharam imensa visibilidade. Seu canal do Youtube conta hoje com 125 mil assinantes e o vídeo mais acessado ("Como rebocar parede") foi visto por quase 3 milhões de pessoas.
Os tutoriais de Paloma criaram um efeito multiplicador. "Várias mulheres me mandam mensagens dizendo que começaram a mudar a casa depois que viram meus vídeos. Uma em especial me mandou uma comentário muito bonito, agradecendo e dizendo que já tinha assentado o piso da casa quase toda e estava muito feliz com o resultado. Disse que, se não tivesse me assistido, nunca teria tido o incentivo de fazer também", conta a youtuber.
As profissionais consultadas pela Gênero e Número demonstraram que a força da representatividade feminina em novos espaços é fundamental para quebrar os estereótipos de gênero que estão tão imbricados na nossa construção social desde a idade escolar.
Uma pesquisa realizada recentemente pela Ong Plan International com meninas entre 6 e 14 anos no Brasil revelou que 40% delas não concordam com a ideia de que sejam tão inteligentes quanto os meninos.
"As meninas começam a perceber, na reação que o mundo tem a elas, que menino é mais inteligente. Ninguém espera que uma menina seja inteligente. Tudo o que ela escuta sobre ser menina envolve beleza, doçura, singeleza e talvez por isso desde cedo ela comece a se distanciar da ideia de que ela pode ser tão inteligente quanto um menino", comenta Viviana Santiago, gerente técnica de gênero da Plan International Brasil.
Para ela, é nesse período também que se constrói a ideia do que são as profissões consideradas masculinas – associadas normalmente à força ou a habilidades matemáticas – e as femininas – vinculadas ao trabalho reprodutivo.
"Tudo isso se relaciona com o processo de socialização de gênero que resulta na ausência de mulheres em alguns espaços e na sobrerrepresentação delas em outros. O processo de formação escolar e familiar é fortemente orientado pelos papéis tradicionais de gênero. As competências destinadas às mulheres são muito relacionadas ao cuidado", explica. "Elas passam a ser treinadas para espaços como escolas, hospitais, creches, e é neles que vemos uma sobrerrepresentatividade de mulheres. O potencial acaba não sendo plenamente desenvolvido para ocupar outros espaços."
Viviana relata o exemplo de uma vizinha que lhe ajudou a consertar um vazamento em seu banheiro. Apesar de ser apaixonada por construção civil, se formou em pedagogia e é professora. "”Esse exemplo explica muito bem: mesmo quando as mulheres têm habilidades, não se reconhecem nesse lugar quando precisam escolher uma profissão, porque veem a barreira do estereótipo de gênero."
Qualificação em campos masculinos cresce
Nem todas as mulheres aceitam passivamente os papeis de gênero que lhe são socialmente atribuídos. É o caso de Daniella Lima, que largou um cargo bem remunerado na organização WWF para seguir seu sonho: ser mecânica.
"Meu marido me perguntava: 'Por que você não monta um salão, não vai mexer com unha, que é o que toda mulher faz?' Eu dizia que não. Quero mexer com carro."
Embora as oficinas mecânicas ainda sejam um reduto masculino, Daniella não é a única mulher a se interesser em trabalhar na área. Em 2009, a única graduação especializada em mecânica automotiva do país teve apenas uma mulher inscrita entre 85 alunos. De lá pra cá, a oferta de cursos aumentou, e a presença delas também. Em 2015, chegaram a 7,5% do total de alunos, segundo dados do Censo da Educação Superior, do INEP.
Daniella não fez uma nova graduação, mas aproveitou a licença-maternidade para buscar qualificação em uma série de cursos no Senai em Rio Branco, no Acre: "Mecânica básica de veículos leves", "Eletricidade automotiva", "Injeção Eletrônica" e "Motores para caminhonetes". Única mulher entre 25 homens, lidou com o isolamento, com o descrédito, com piadas e com o assédio frequente até conseguir completar os cursos.
"Quando entrei, o professor falou: 'É difícil uma mulher começar e terminar um curso aqui'. A maioria das mulheres acha difícil, pesado. Em um ambiente com muitos homens, a gente tende a se intimidar. Nos intervalos, eu ficava isolada porque eles se reuniam para falar 'coisas de homem'. E dentro de sala era muito chato, porque eles riam das perguntas que eu fazia", relata.
Ela não se intimidou. Estimulada pela irmã, engenheira mecânica formada, perseguiu seu sonho. Sua obsessão por abrir uma oficina surgiu da indignação pela forma como era tratada quando levava seu carro para o conserto. Ela se sentia sempre enganada, tendo que pagar muito mais que clientes homens pelo mesmo serviço. Queria oferecer um trabalho honesto e didático para outras mulheres. Com isso, conseguiu cativar logo uma ampla clientela que, a princípio, atendia a domicílio, mas logo depois lhe permitiu abrir a Pit Stop Dani, a primeira e única oficina conduzida por mulheres em Rio Branco.
Atualmente, ela recebe cerca de cem carros por mês e conta com a ajuda de cinco outras mulheres, todas treinadas por ela. "Eu queria ter uma oficina com mulheres, mas não havia mão de obra. Então decidi treiná-las. Eu posso plantar uma semente. Hoje dou aulas de mecânica básica na prefeitura e em instituições. É o que mais gosto de fazer", afirma.
As mulheres também compõem a maior parte do seu público – parte pela propaganda boca à boca, parte pela desconfiança que desperta entre os homens. "Dentre as pessoas que atendo, 70% são mulheres e 30%, homens e empresas. Poderia ter mais homens, mas muitos entram com o carro aqui e quando se deparam com um monte de mulher, dão ré e vão embora".
Enfrentar o descrédito e o espanto é algo comum para quem desafia o papel de gênero. Fernanda Prieto é uma das 197 pilotas de avião de um total de 13.928 profissionais, segundo dados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) de 2016. A sub-representação de mulheres nesta profissão no Brasil, apenas 1,4%, corresponde a menos da metade da média mundial, que é de 5,4%.
Nas cadeiras universitárias, a sub-representação também é grande. Os cursos de pilotagem, direcionados a quem deseja ocupar o mesmo cargo de Fernanda, tiveram cerca de 4% de mulheres em 2009. Hoje o número alcança 10%. Em engenharia ou mecânica aeronáutica, são 13%. Embora ainda estejam longe da equidade nesses campos, de 2009 a 2015 a ascensão foi lenta, porém contínua.
Fernanda colecionada casos em que ouviu que "pilotar não é coisa de mulher". Ela lembra do dia em que uma menina foi conhecer a cabine de comando e repetiu a frase, dizendo que havia aprendido com o pai. "Ela disse que o pai sempre repetia que 'mulher não sabe dirigir'. Na hora eu dei risada e falei que, na verdade, mulheres podem fazer tudo o que elas quiserem", conta a profissional da Gol, que se interessou pela profissão graças ao pai, que era piloto da Varig e eventualmente a levava para acompanhar seus voos.
Agora ela faz o mesmo com sua filha, o que gerou um história curiosa. Quando pequena, a menina sempre lhe pedia para parar de voar até que, quando tinha oito anos, embarcou pela primeira vez com a mãe.
"Ela percebeu que os passageiros me olhavam com um olhar diferente e que alguns pediam para tirar fotos. Ela me perguntou o motivo, já que eu não era nenhuma pessoa 'famosa'. Expliquei que eram poucas mulheres que voavam e por isso as pessoas se admiravam. Ela passou um tempo quieta. Depois, com os olhos cheios de água, me abraçou e falou que sentia muito orgulho em ser minha filha", conta.
Machismo ainda é obstáculo
A qualificação pode abrir as portas de mercados antes frequentados só por homens, mas ainda é preciso lutar por reconhecimento e direitos para as mulheres nesses espaços. Muitas acabam tendo que abandonar suas carreiras porque o ambiente não é pensado para incluí-las, especialmente depois que optam por ter filhos. Esse é um dos motivos trazidos por Letícia Ramos, engenheira naval, para explicar a ausência de mulheres no seu setor. Ela trabalha em uma empresa offshore, coordenando uma equipe cuja tarefa é injetar ar e água em dutos submarinos. Chega a passar entre três e quatro semanas consecutivas embarcada em navios ou plataformas.
"É uma área promissora, com boa remuneração. Achei que o número de mulheres trabalhando aqui ia crescer, mas estagnou. Muitas acabam desistindo depois de ter filhos porque temos que passar semanas embarcadas. Então, até vêm mulheres, mas são as mais novas", explica a engenheira.
Letícia conta que as mulheres são minoria absoluta. Segundo ela, em embarcações que comportam 200 pessoas, há no máximo 10 mulheres. Apesar de serem poucas, a engenheira crê que há um avanço rápido nas condições de trabalho. Quando começou a embarcar, em 2009, por exemplo, os vestiários eram mistos.
"Atualmente é tudo separado. Eu tenho uma cabine. As plataformas e navios mais novos já têm vestiário para mulher. Isso é recente. Tem navio mais antigo que teve que adaptar. Há seis, sete anos, algumas das mulheres que faziam a limpeza acabavam engravidando e isso deu muito problema. Hoje está bem mais organizado".
Ela atribui a melhoria do tratamento das empresas a dois fatores. Primeiro, à intensificação do debate feminista e, segundo, ao fato de grande parte das empresas de offshore ser multinacional. "Existem treinamentos para lidarmos com assédio, por exemplo".
Apesar disso, ela relata que o problema do machismo ainda persiste, ainda que seja de forma sutil ou em piadas desconcertantes. Assim como algumas das outras profissionais consultadas pela reportagem, Letícia teve que se "adaptar" para não sofrer em seu trabalho. "Eu já me acostumei. Era pior no início. Acho que tem gente que assusta um pouco. Tem uma engenheira mais nova, por exemplo, que é feminista. Ela briga muito. Eu já não ouço mais o que eles dizem porque algumas coisas são chatas de ouvir."
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