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domingo, 18 de junho de 2017

Mundo em ruínas, cinema vivo

26.05.17
Mesmo num mercado exibidor estrangulado como o nosso, o cinema brasileiro às vezes encontra brechas para nos revelar boas surpresas. É o caso de três filmes de diretores estreantes em longas-metragens que estão em cartaz no país. São bem diferentes entre si em temática, linguagem narrativa e tamanho de produção, mas, cada um à sua maneira, trazem um novo alento para os cinéfilos.
Comecemos pelo mais vistoso deles, O rastro, de João Caetano Feyer, que em uma semana de exibição já atraiu quase 50.000 espectadores. Esse pequeno furor se justifica. A despeito de seus eventuais excessos, é uma incursão brilhante no território difícil do suspense e do terror.
Desde as primeiras imagens – ou mesmo antes delas, com a trilha de ruídos invadindo já as vinhetas das companhias produtoras – o filme constrói uma atmosfera de mistério e ameaça. Uma câmera avança quase colada a uma parede, mostrando suas ranhuras e desenhos, e desemboca num cômodo mal iluminado de um prédio em ruínas, atulhado de escombros e pombos, sob uma malha sonora de gemidos, arrulhos, murmúrios e música climática. É, em princípio, apenas um pesadelo. Corta para uma realidade muito concreta e dolorosamente atual: um hospital público do Rio de Janeiro que está sendo fechado por falta de verbas.
Pesadelo real
Todo o restante da narrativa será uma tentativa bem-sucedida de imbricar as duas coisas, o pesadelo e o “real”, ou, mais precisamente, de extrair do real todo o seu potencial de pesadelo, com o que este comporta de absurdo e horror.
Uma sinopse possível, sem estragar as surpresas: João (Rafael Cardoso), um jovem médico que trabalha para a Secretaria da Saúde, é encarregado de transferir para outros locais os últimos pacientes do hospital que será fechado. Nesse processo, ele descobre o intrigante desaparecimento de uma paciente, uma menina que mora num orfanato. Prestes a tornar-se pai, João resolve investigar o mistério até o fim, embrenhando-se cada vez mais nas entranhas do hospital já semidesativado e parcialmente em ruínas.
Essa viagem ao fundo do horror é construída com um agudo sentido do ritmo e uma sofisticação visual que beira o preciosismo: um controle absoluto da luz, do foco e da composição de modo a configurar um mundo ameaçador, malsão, imprevisível. Os enquadramentos quase nunca são frontais, convencionais, a luz nunca é uniforme, quase sempre as bordas do quadro estão nas trevas. Ainda que o sentido seja sempre o de aprofundar o inferno vivido pelos personagens, há um evidente deleite na construção visual, que ora lembra o expressionismo de um David Lynch, ora remete ao barroquismo de um Dario Argento (os supercloses de olhos, de gotas de suor ou de sangue, a deformação do espaço mediante o uso de determinadas lentes, a reversão do movimento).
Mergulho nas trevas
Dois planos, ambos na mesma sequência, destacam-se por sua invenção visual. No primeiro, em câmera subjetiva, o protagonista avança pelo corredor mal iluminado de um andar desativado e cheio de entulho do hospital, abrindo cortinas de plástico transparente sujo. É como se adentrasse a cada vez num círculo mais profundo do horror. No outro plano, um travelling de recuo, o personagem anda de costas em direção à câmera por um corredor iluminado apenas pela luz que entra pelas janelas. À medida que ele recua, as janelas vão se fechando à sua passagem, bloqueando a luz, adensando as trevas, até que no final do percurso ele se encontra na escuridão completa.
Todo esse apuro visual não implica descuido da dramaturgia. A direção de atores obtém uma atuação coesa de um elenco heterogêneo, do “televisivo” Rafael Cardoso ao veterano Jonas Bloch, com destaque para a sempre ótima Leandra Leal, no papel da esposa grávida do protagonista, e uma das últimas participações de Domingos Montagner, a quem o filme é dedicado.
Se há um possível reparo a ser feito é quanto ao uso excessivo do som como muleta para a criação do suspense. A toda hora assusta-se o espectador com o estrondo de portas que batem ou objetos que tombam no chão, além dos gemidos e sussurros quase onipresentes e da música enfática. Um pouco mais de contenção na utilização desses recursos poderia, a meu ver, intensificar ainda mais o efeito aterrorizante.
Comeback
Se O rastro faz uma homenagem póstuma a Montagner, Comeback: um matador nunca se aposenta, de Erico Rassi, é a despedida cinematográfica do grande Nelson Xavier, morto recentemente. Aqui, o veterano ator encarna Amador, um pistoleiro profissional decadente do empoeirado interior de Goiás. Hoje trabalhando como vendedor de máquinas caça-níqueis para bares de última categoria, ele é incitado a voltar à ativa ao ser procurado por dois cineastas interessados em fazer um filme sobre seus tempos de glória.
Há algo de patético nessa tentativa de retorno, pois o matador já não é o mesmo e os tempos são outros. O mérito maior do filme é concentrar seu foco justamente nesse descompasso, baseando-se na atuação contida e precisa de Xavier para expressar o sentimento de melancolia pela passagem do tempo. É quase como um faroeste crepuscular de Sam Peckinpah, sem a espetacularização da violência.
Muito romântico
Já o longa-metragem de estreia da dupla Melissa Dullius e Gustavo Jahn, Muito romântico, trafega por uma via cinematográfica completamente diferente. É um curioso exemplar do que hoje se costuma chamar de autoficção e, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre o próprio cinema como meio de apreender o mundo exterior e de expressar o imaginário de quem o produz.
Misturando registros, suportes e texturas diferentes (super-8 e digital, home movie e encenações ficcionais, material de arquivo e locução em off), é um filme na primeira pessoa do plural, narrando fragmentariamente a experiência do casal de realizadores em sua migração para Berlim, sua interação com a cidade e seus moradores. Um casal em permanente construção/desconstrução, como a própria capital alemã. Nesse trânsito entre o íntimo e o social Muito romântico constrói um espaço que é puro cinema.

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