Romance da escritora canadense Margaret Atwood lançado em 1985 permanece assustadoramente atual.
31/05/2017
Caio Delcolli Especial para o HuffPost Brasil
Imagine que, em um futuro próximo, o presidente e quase todos os congressistas do Brasil são assassinados por um grupo cristão fundamentalista. Em seguida, ele assume o poder, suspende a constituição e instaura uma ditadura militar. Agora o Brasil é uma teocracia. Os direitos das mulheres são retirados – e elas se tornam o centro desse novo sistema.
31/05/2017
Caio Delcolli Especial para o HuffPost Brasil
Imagine que, em um futuro próximo, o presidente e quase todos os congressistas do Brasil são assassinados por um grupo cristão fundamentalista. Em seguida, ele assume o poder, suspende a constituição e instaura uma ditadura militar. Agora o Brasil é uma teocracia. Os direitos das mulheres são retirados – e elas se tornam o centro desse novo sistema.
Elas são divididas entre férteis e inférteis. As que podem ter filhos – poucas, pois a degradação do meio-ambiente causou danos à fertilidade de quase todas as mulheres – são mantidas na casa dos comandantes do governo para, uma vez por mês, serem estupradas por eles. O objetivo imposto a elas é trazer novas vidas ao país, agora chamado de "Gilead".
Este é, em resumo, o universo no qual acontece a história de O Conto da Aia (The Handmaid's Tale, no título original), romance da escritora canadense Margaret Atwood lançado em 1985. A "República de Gilead" ocupa o que já foi chamado de Estados Unidos.
O livro voltou a ser assunto recorrente quando Donald Trump foi eleito presidente dos EUA em 2016. A obra voltou às listas de bestsellers da Amazon na companhia de outra distopia: 1984, de George Orwell. Inúmeras referências ao livro de Atwood foram feitas em recentes protestos feministas, incluindo a Marcha das Mulheres contra Trump realizada em janeiro. Agora adaptada para a TV, na série The Handmaid's Tale, exibida pelo serviço de streaming Hulu, a história que Atwood criou ampliou ainda mais seu sucesso.
A ascensão de líderes populistas, como Trump e Marine Le Pen, candidata da extrema-direita à presidência da França que chegou ao segundo turno, tem sido comparada ao enredo de ambos os livros, cujas narrativas distópicas, vistas frequentemente como "proféticas", de fato podem apresentar semelhanças com a vida real.
"O Conto da Aia conversa diretamente com as tensões que têm se construído [no mundo] desde que Atwood escreveu a narrativa", defende Marlene Goldman, especialista em literatura canadense contemporânea da Universidade de Toronto, em entrevista ao HuffPost Brasil.
Goldman diz que a história do livro é sobre nações-estados que incitam à xenofobia e usam a religião como estratagema para justificar a remoção de direitos dos cidadãos. Em O Conto da Aia, quando a facção fundamentalista Filhos de Jacob suprime o governo com um golpe, a culpa é atribuída aos fanáticos islâmicos. "O romance é estranhamente presciente. Atwood sempre teve um entendimento afiado da política, da família ao estado-nação", diz. A professora de literatura considera o romance "de fato, profético".
A história
O Conto da Aia é centrado em Offred. Ela perdeu a filha e o esposo para a República de Gilead e se torna uma das aias; a protagonista serve a um comandante do alto escalão do governo. Não fica claro qual é o nome real da personagem. Ela é apenas chamada de "Offred", que se origina de "of Fred" – em livre tradução para português, "do Fred". Em Gilead, as aias são, literalmente, possessões de seus comandantes.
Elas vestem o corpo todo de vermelho, exceto a cabeça, na qual elas usam uma touca branca com duas grandes abas, que as impedem de ver ao redor e de serem vistas também. As Esposas dos Comandantes são donas de casa inférteis e usam vestidos verdes. As Marthas são responsáveis pela limpeza e pela comida da casa dos Comandantes. As aias são preparadas para o posto pelas Tias – treino que inclui humilhações e tortura.
Os Comandantes as estupram no período fértil, em um ritual bizarro no qual elas se deitam entre as pernas das Esposas dos Comandantes, enquanto os chefes as penetram. Se as aias tentam escapar, são assassinadas, pois a vigilância é intensa nas ruas de Gilead. Gays são chamados de "traidores do gênero" e são enforcados, assim como médicos que praticavam abortos em mulheres, antes dos Filhos de Jacob assumirem o poder.
A história é narrada por Offred e soa como o relato de uma testemunha. Atwood se baseou em notícias para construir o universo e o enredo de O Conto da Aia. Em seu acervo, na Thomas Fisher Rare Book Library, biblioteca da Universidade de Toronto – Atwood se graduou em Inglês na instituição, nos anos 1960 –, encontram-se com o manuscrito do romance os recortes de jornais feitos pela autora. São reportagens sobre o cerceamento às liberdades das mulheres e poluição do meio ambiente.
"O Conto da Aia alerta que, tipicamente, pessoas que buscam poder criam hierarquias que consolidam o poder masculino e patriarcal", analisa a professora. "Insistem que a perda da liberdade das mulheres é justificável porque proporciona 'liberdade'. A falsa mensagem nisso é que mulheres precisavam de proteção da brutalidade masculina e essa proteção, supostamente, implica no escravizamento pelo estado."
No Brasil, O Conto da Aia foi lançado pela Rocco, e no meio deste ano, ganhará uma nova edição, com nova capa. Tiago Lyra, editor da obra, atribui o sucesso do livro à "força literária" da autora, e por ela trazer à ficção especulativa temas que ainda são mais relevantes no século 21, como a opressão feminina e o fundamentalismo cristão na política.
"É difícil não associar as preocupações sociais que o livro lança ainda nos anos 1980 ao cenário político mundial atual", diz. "Toda boa ficção científica carrega uma certa dose de 'profecia', já que trabalha potencializando temas que ainda são incipientes hoje e levando ao que poderiam ser suas consequências lógicas."
Lyra e Goldman são da opinião de que as instituições democráticas da vida real são frágeis. "O Conto da Aia apenas reflete sobre o que está ao nosso redor", diz o editor. "A ficção de Atwood serve para qualquer um ingênuo o suficiente para pensar que direitos e liberdades democráticas são eternos", defende a professora.
De fato, o livro é assustador.
A autora o escreveu com concisão e olhar atento aos detalhes do dia a dia de Offred. Há frases aterradoras, como quando a protagonista descreve o quarto que habita na casa do Comandante e percebe uma marca no teto: "Deve ter havido um lustre, antes. Eles tinham removido qualquer coisa em que você pudesse amarrar uma corda".
A escritora – hoje com 77 anos, mora em Toronto com seu parceiro, o escritor Graeme Gibson – venceu o icônico prêmio de ficção científica Arthur C. Clarke por O Conto da Aia. Ela também foi indicada ao Booker Prize e ao Nebula. Atwood é autora de aproximadamente 60 livros, incluindo romances, infantis, contos, poesia, não ficção e quadrinhos; frequentemente, ela é cotada para o Nobel de literatura. Outros trabalhos importantes dela são Vulgo Grace, O Assassino Cego, Oryx e Crake e Olho de Gato.
"Margaret Atwood é uma autora que sabe transitar muito bem entre diferentes gêneros. Com isso, ela quebra preconceitos já antigos em torno do que é 'literatura' e o que são gêneros populares, ou 'de entretenimento'", diz Lyra.
"Em O Conto da Aia, tudo que conhecemos daquele mundo é através do relato extremamente subjetivo de Offred, que às vezes decorre como um fluxo de consciência. Cabe ao leitor preencher as lacunas de como a sociedade americana chegou àquele ponto, e é só no final do livro que entendemos por que é feita essa escolha. Assim, a autora consegue oferecer um romance ao mesmo tempo intimista no plano de sua personagem e tão panorâmico quanto uma distopia pode ser."
Goldman diz que Atwood é única na literatura canadense por adotar uma escala épica em suas histórias, mas sem abrir mão de seu "olhar infalível para cada detalhe doméstico".
"A escrita de Atwood trai seu treinamento inicial como poeta. Cada palavra, cada frase contém um soco. No caso de O Conto da Aia, isso serve bem. Os leitores não podem ignorar a mensagem. Nós entendemos que direitos e liberdades não são eternos. Uma inundação de detalhe sensual nos transporta para o mundo de Gilead – um mundo que, assim como o nosso, está encharcado com a banalidade do mal."
A série
Após adaptações para cinema e ópera – e, atualmente, para os quadrinhos –, O Conto da Aia chegou à TV neste ano por Bruce Miller, roteirista e produtor de séries como E.R. e The 100. Com episódios disponibilizados semanalmente (em exceção dos três primeiros) no Hulu desde abril, o seriado é uma produção do serviço de streaming e da MGM Television.
No elenco estão Elisabeth Moss – colecionadora de indicações ao Emmy e ao Globo de Ouro, por trabalhos em Mad Men e Top of the Lake – como Offred, Samira Wiley (Orange is the New Black), Yvonne Strahovski (Chuck), Joseph Fiennes (Shakespeare Apaixonado), Alexis Bledel (Gilmore Girls), Ann Dowd (The Leftovers) e Max Minghella (A Rede Social).
O seriado tem feito grande sucesso de público e crítica; uma segunda temporada já está confirmada. O Hulu está indisponível no Brasil, mas existem expeculações de que o canal a cabo Fox Premium irá exibir The Handmaid's Tale por aqui. A informação ainda não foi confirmada pelo canal.
Outras adaptações baseadas em obras de Margaret Atwood estão em produção. Vulgo Grace (Alias Grace) terá uma minissérie dirigida por Mary Harron (Psicopata Americano), com roteiro de Sarah Polley (indicada ao Oscar por Longe Dela e amiga pessoal da escritora). The Heart Goes Last, outra distopia – na qual criminosos estão à solta e o restante das pessoas está presa –, teve direitos de adaptação comprados também pela MGM. O livro infantil Wandering Wenda também vai virar série, pela emissora canadense CBC.
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