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quinta-feira, 19 de julho de 2018

O brilhantismo de Hannah Gadsby

por Joanna Burigo — publicado 12/07/2018
Em seu especial de stand-up a comediante australiana subverte o gênero sendo brutalmente franca sobre... gêneroe
Netflix/Divulgação
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Nenhuma análise sobre o especial pode substituir o impacto que o texto formulado por Gadsby tem
O stand-up Nanette, de Hannah Gadsby, é um daqueles produtos culturais que volta e meia tomam audiências de assalto. Embora a peça venha sendo apresentada há cerca de um ano em teatros pela Austrália, terra natal de sua criadora, o especial filmado na Ópera de Sydney e lançado pela Netflix há cerca de um mês rapidamente a tornou em uma sensação global.

O frisson não é à toa: Gadsby desfaz a tradição humorística com sarcasmo, ostenta erudição para dessacralizar o intelectualismo e sugere ser o melhor modelo de masculinidade que os homens têm neste momento histórico. Sua capacidade iconoclástica se revela nos remates de cada piada – e não bastasse isso, ela ainda explica como e por que é tão subversiva.
Foi Laura Mulvey, em seu ensaio “Prazer visual e cinema narrativo”, quem disse que analisar o prazer e a beleza os aniquila, e que essa era mesmo sua intenção ao escrevê-lo. Se o prazer e a beleza são produzidos a partir de misoginia, que queimem – e Hannah Gadsby faz exatamente isso com a comédia, tão historicamente machista. Seu brilhantismo efetivamente modifica as formas como concebemos humor, valorizamos o conhecimento e a arte, e debatemos normas de gênero.
Nenhuma resenha ou análise sobre o especial pode substituir o impacto que o texto magnificamente formulado por Gadsby tem, e recomendo fortemente que a leitora – e sobretudo o leitor – o assistam imediatamente, pois em pouco mais de uma hora ela constrói uma das narrativas mais incisivas, acessíveis e potentes sobre gênero.
Enquanto assistia, desejava poder ter composto aqueles argumentos, mas somente uma mulher lésbica poderia ter encontrado o sapatão adequado para tantas proverbiais pisadas na sociedade.
Em nenhum momento Gadsby se declara feminista, mas está tão ocupada em oferecer uma análise de mundo a partir de sua experiência individual que pouco importa quais são suas afiliações. A bem da verdade, Gadsby faz questão de desviar de quaisquer identificações, e parece fazer isso por ter consciência de que todas são compreendidas a partir de estereótipos.
Ela é tão inteligente que em uma mesma piada desarticula algumas exigências esdrúxulas por enquadramentos de gênero, venham elas do transativismo ou do feminismo radical, resolvendo em menos de um minuto uma disputa histérica ao colocar a responsabilidade por tais exigências onde ela factualmente está: naqueles que ela qualifica como gender normals.
É exatamente isso que os estudos de gênero se propõem a fazer: interpelar normas de gênero que produzem violência, e me peguei batendo palmas quando Gadsby enunciou que debates sobre violência transcendem gênero e sexualidade, e precisam ser feitos de formas mais maduras e responsáveis.
Em uma entrevista recente para o jornal português Público, a titã dos estudos de gênero Joan Scott elucida que estes se ocupam menos das identidades fixas que conhecemos (homem/mulher, masculinidade/feminilidade), visto que elas não têm significados permanentes, e mais sobre como tais diferenças são percebidas, definidas, inter-relacionadas, questionadas, protegidas e produzidas, e com quais finalidades. Gênero, como seres humanos, não é estanque, mas permanentemente moldado e transgredido.
Gadsby é particularmente investida, no entanto, no questionamento da masculinidade. “São tempos difíceis para homens brancos”, ela zomba, afinal “é a primeira vez que eles são uma subcategoria da humanidade”.
Homens brancos vêm sendo os detentores da história, quem enuncia verdades, quem produz estórias e quem define a razão. São os donos do campinho e da bola, e estão assustados com a possibilidade de serem driblados em jogo ou expulsos do campo.
Movimentos pejorativamente classificados como “identitários” vêm produzindo ondas de choque que desvelam a ilusão que homens brancos insistem em manter: a de serem sujeitos universais. É a diferença, Gadsby salienta, o que fomenta aprendizado, e a arrogância do poder masculino implica em não assimilar nem partilhar de nenhuma perspectiva que não a própria.
Mesmo quando homens pensam estar propondo outras perspectivas, geralmente não passa da mesma visão, só que refratada – e sendo graduada em história da arte, ela se utiliza do cubismo de Picasso como exemplo do caleidoscópio fálico que homens pensam passar por pluralidade.
Um outro exemplo que ela aciona para sustentar sua crítica à masculinidade é a obsessão dos homens por reputação, cuja defesa vem sendo notória em tempos de #metoo. Homens como Roman Polanski, Donald Trump, Bill Cosby e Harvey Weinstein são farinha do mesmo saco, ela diz, e valorizam suas reputações em detrimento das mulheres e das crianças.
A energia investida na preservação da reputação de predadores indica que estes caras estão pouco se lixando para as mulheres e para as crianças – e no Brasil não faltam exemplos deste tipo específico de covardia soberba e misógina.
Mesmo sendo uma vítima real da violência masculina, Gadsby insiste que não quer se posicionar como tal, e ao fazer isso ajuda a detonar a fixação de certos homens em insistir que feminismo é vitimismo. Não é. O feminismo reconhece que mulheres são vitimadas pela violência dos homens, e se constrói para que isso deixe de acontecer.
E é imprescindível que compreendamos e saibamos acomodar – de formas maduras e responsáveis no debate público – a raiva que mulheres sentem ao se perceberem vitimadas por uma violência estrutural e socialmente sancionada.
Até porque a raiva, ela sustenta, não pode ser um fim. A raiva – como o riso, efeito tão característico de sua profissão – é contagiosa e tende a produzir pouco além de mais raiva. Urge que os homens se ocupem menos – e menos narcisicamente – dos efeitos que nossa raiva produz em suas psiques e reputações, e deixem de ser, nas palavras de Gadsby, babacas arrogantes que pensam ter monopólio da condição humana. Misoginia é ódio infundado. A raiva das mulheres é perfeitamente justificável.
Como bem colocou minha conterrânea Juliana Thó em uma postagem de Facebook na qual recomendava o especial, este não é um simples stand-up comedy. É um stand up, humanity.  

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