Karina Okajima Fukumitsu é Pós-Doutora pelo Instituto de Psicologia da USP e psicoterapeuta
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Certa manhã, surpreendi-me com meu filho de 12 anos tomando café, mexendo no celular e comendo seu cereal, sem a plena atenção na maneira como comia. Fiquei brava com ele e “confisquei o celular temporariamente”, dizendo que não era certo comer e ver o celular ao mesmo tempo.
Sentei-me ao lado dele, tentei puxar conversa perguntando como ele estava e Enzo emudeceu, mostrando-se ressentido com o fato de eu ter retirado o celular “no momento que o vídeo do YouTube estava quase para acabar”. Cometi um erro grotesco ao retirá-lo abruptamente de suas mãos e uma mistura de culpa e intenção “de educar direito” e de ofertar orientação e limites começou a invadir meu coração. Conjunto de sentimentos inóspitos que precipitaram o questionamento sobre se eu estava sendo uma “boa” mãe. Em vez de encontrar respostas que pudessem dar conta da minha insegurança, mais questões emergiram e serviram de inspiração para a presente reflexão sobre os processos autodestrutivos na adolescência, falta de atenção plena e o sofrimento juvenil.
O que leva os adolescentes a direcionarem seus interesses e seu tempo para se autodestruírem? O que significa sermos bons pais nesta época, cujo fazer se sobrepõe ao ser? O que significa educar um filho em uma época de estímulo demasiado das habilidades tecnológicas?
Resmini (2004, p. 4) ensina que “não deixa de ser mais um paradoxo que no alvorecer da vida, quando um leque de caminhos de realização se abre diante da pessoa, muitos voltem os impulsos hostis contra si mesmos na aparente busca da autodestruição”. Dessa forma, a discussão sobre os fragmentos gerados pelo abismo entre o conhecimento direcionado para o alto desempenho escolar e para a carreira produtiva e a sabedoria de se viver é demanda imediata, sobretudo, pela impotência, tristeza e torpor sentidos.
Na pungente reflexão O suicídio dos que não viram adultos nesse mundo corroído, Eliane Brum expôs pontos relevantes quando apresenta a inversão do questionamento que se faz no dia a dia quando direcionamos nossa atenção para a prevenção ao suicídio, indagando: “por que não haveria mais adolescentes interrompendo a própria vida nos dias atuais do que no passado?”. Acrescenta a discussão sobre o “mundo distópico” do qual há a perspectiva de que quanto aos “adolescentes (que) se matarem”, eles estariam dizendo “algo sobre a época em que não viverão”.
Sou do tempo da máquina de escrever e os adolescentes são da época dos computadores e smartphones.
Sou do tempo do pesquisar em enciclopédias pesadas que se acumulavam nas estantes de minha casa e das bibliotecas que precisava frequentar como estudante e pesquisadora e os adolescentes atuais são da época do “Google”; em vez de irem em direção ao conhecimento é o conhecimento que vem facilmente, em menos de 1 minuto. Acessado sem nenhuma barreira, anteparo ou dificuldade, o conhecimento chega muito fácil e promove a sensação utópica de que tudo é resolvido em um passe de mágica.
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Sentei-me ao lado dele (meu filho), tentei puxar conversa perguntando como ele estava e Enzo emudeceu, mostrando-se ressentido com o fato de eu ter retirado o celular “no momento em que o vídeo do YouTube estava quase para acabar”
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É comum, quando peço para aprender a mexer nas engenhocas tecnológicas, os jovens não terem paciência para ensinar e preferirem pegar o controle ou meu celular e deixarem no canal ou da maneira como eu havia pedido. Da mesma maneira, como o conhecimento vem fácil, ele também é feito sem a plena atenção que a educação mereceria receber.
Cassorla (2017, p. 8) aponta que o crescimento do radicalismo que “prega soluções fáceis para as mazelas socias, supondo sempre que a culpa é dos ‘outros’ é preocupante […], o ser humano ataca sua própria capacidade de pensar e sentir, de se colocar no lugar do outro, de modo que as possibilidades de compreender, amar e ser solidário são destruídas […]”. A educação não está tendo mais seu tempo de acontecer…
A tecnologia não poderia ser extensão de corpo. Explico. Se dependesse de alguns adolescentes, os relacionamentos aconteceriam apenas virtualmente e por meio da diversidade de recursos tecnológicos que a modernidade oferece.
A tecnologia oferta a falsa impressão de que tudo é possível no mundo virtual, por exemplo, se alguém morre imediatamente ao desligar o jogo, provavelmente o personagem que morreu ressurgirá como se nada houvesse acontecido. Esse mundo fantasioso e virtual não favorece a constatação da realidade e que o enfrentamento dos problemas incluem dor e o sofrimento.
O que mais me preocupa é que nossos jovens perdem a oportunidade de exercitar seus ajustamentos criativos, no sentido de aprenderem sobre diversidades de maneiras de enfrentamento de algumas intempéries que enfrentarão ao longo de sua vida. O jogo da vida é muito diferente dos jogos virtuais.
Fico preocupada com o fato de não ver mais os adolescentes experienciarem aquilo que acreditei um dia ser bom e que, segundo minha concepção, representaria a sabedoria de se viver. Nesse sentido, se dependesse de mim, para minimizar o sofrimento que às vezes torna a vida insuportável, os jovens teriam também aulas sobre enfrentamento de adversidades. Em vez de ficarem fixados na frente de um computador, estariam andando de bicicleta, correndo em parques e praticando esportes nos quais teriam oportunidades de conhecer pessoas. Estariam desfrutando das benesses das relações interpessoais e não somente das virtuais.
Talvez não sejam apenas os adolescentes que precisem se adequar às alternâncias entre o convívio virtual e real. Há a necessidade de que nós, os adultos, orientemos nossa atenção para a necessidade de encontrarmos maneiras de nos atualizarmos, respeitando-nos enquanto gerações construídas por momentos diferentes.
Compreendo a necessidade de criarmos uma cultura e uma visão social que busque afinidades, respeite as diferenças com nossos adolescentes para que criemos alicerces fundamentais para a construção de uma linguagem comum que sustentará a articulação entre as fragilidades e potências a fim de que se tornem fatores de proteção para momentos de desespero e desesperança. E, como Resmini (2004, p.76) salienta, para “[…] gerar um sentido de pertencimento, um significado para a existência, além de atenuar as pressões do cotidiano causadas pela competição materialista”.
Há ainda muito esforço a ser direcionado para esta causa que ressalta a importância de termos plena atenção ao sofrimento juvenil, pois a discussão sobre processos autodestrutivos não deverá ser encerrada apenas em se apresentar os números, fatores de risco e de proteção, mas sim, no fato de que precisamos também direcionar nossos esforços ofertando espaços para acolhimento ao sofrimento existencial e para que nossos adolescentes aprendam sobre a necessidade de integração entre conhecimento e sabedoria de se viver para se lidar com as intempéries que a vida apresenta.
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Referências
Brum, E. (2018, 19 de junho). “O suicídio dos que não viram adultos nesse mundo corroído”. El país. Recuperado em 19 de junho de 2018, de https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/18/opinion/1529328111_109277.html
Cassorla, R.M.S. (2017). Suicídio – Fatores inconscientes e aspectos socioculturais: uma introdução. São Paulo: Blucher.
Resmini, E. (2004). Tentativa de suicídio: um prisma para a compreensão na adolescência. São Paulo: Revinter.
Waiselfisz, J.J. (2014). Mapa da Violência 2014 – Os Jovens do Brasil. Rio de Janeiro: FLACSO Brasil.
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