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sábado, 14 de julho de 2018

A globalização das campanhas anti-gênero

SPW
Movimentos anti-gênero transnacionais na Europa e na América Latina criam alianças improváveis.
Entre 2012 e 2013, milhares de pessoas se manifestaram contra o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo em Paris e em outras cidades francesas. O êxito dessas manifestações surpreendeu um país frequentemente associado ao secularismo e à liberdade sexual.

A organização La Manif pour Tous  (A Manifestação para todos )  coordenou algumas das manifestações que coloriram as ruas com o rosa e o azul de suas bandeiras. Também inspirou ativistas em outros países a emular os franceses com lemas, cartazes e estratégias que atravessariam fronteiras. Ainda que mobilizações similares já tivessem acontecido previamente na Espanha, na Itália, na Croácia e na Eslovênia, o ano de 2012 parece ter sido um ponto de inflexão.
Manifestações nem tão espetaculosas também aconteceram na América Latina, região que é tanto alvo como centro produtor de campanhas anti-gênero.  Um primeiro lampejo foi registrado em 2011 no Paraguai, quando o termo “gênero” foi contestado pela direita católica durante as discussões sobre o plano nacional de educação. Em 2013, o presidente esquerdista do Equador, Rafael Correa, em um de seus programas televisivos semanais, denunciou a “ideologia de gênero” como um instrumento destinado a destruir as famílias. Desde 2014, esses ataques têm se intensificado chegando a configurar manifestações massivas em alguns países, como na Colômbia, onde tiveram um impacto negativo e decisivo no referendo sobre os acordos de paz em 2016.
Essa ofensiva regional contra gênero culminou, de algum modo,  em novembro de 2017, quando a filósofa e teórica de gênero Judith Butler sofreu um violento ataque em São Paulo. Ainda que o fato tenha recebido atenção mundial da mídia, esse evento deve ser compreendido como sendo apenas a ponta do iceberg dessa formação no contexto latino-americano.
Campanhas transnacionais
Nas duas regiões aqui analisadas,  esses movimentos disputam o que intitulam como sendo a “ideologia de gênero”. Às vezes referida como teoria do gênero ou generismo, essa  “ideologia” é apresentada como a matriz de políticas que devem ser combatidas e, nesse sentido, não deve ser nunca confundida com os estudos de gênero ou políticas específicas que promovem a igualdade de gênero. Não é menos importante, no entanto, que a ideologia de gênero seja descrita por alguns dos atores que a atacam como uma máscara que encobre um plano totalitário levado a cabo por feministas radicais, ativistas LGBTQI e estudiosos de gênero com vistas a conquistar o poder.

Inúmeros acadêmicos situaram as origens da ideologia de gênero como um esforço intelectual do Vaticano e de seus aliados políticos.
Fundamentalmente, essa moldura recaptura e atualiza os discursos católicos da Guerra Fria contra o marxismo, o que desperta sentimentos anticomunistas tanto na Europa do Leste como na América Latina. Nesse último caso, ativistas da direita têm associado os “males do gênero” com os “espectros da Venezuela” e, no Brasil, têm clamado abertamente por uma intervenção militar. Ainda que os fatores nacionais que desencadearam esse movimento variem bastante – aborto e direitos reprodutivos, matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, direitos parentais LGBTI, integração de gênero, violência de gênero, educação sexual, políticas contra a discriminação — a explicação oferecida pela vozes anti-gênero é sempre a mesma: tudo é culpa da ideologia de gênero.
Esses movimentos não somente compartilham inimigos em comum, como lançam mão de narrativas e estratégias similares e, sobretudo, compartilham um estilo peculiar de atuação política. Optamos pela terminologia “campanhas transnacionais contra o gênero” para enfatizar seu alcance global e singularizar o perfil específico dessa formação dentro do panorama mais amplo de oposição ao feminismo e aos direitos LGBTI.
O berço católico
Numerosas/os acadêmicas/os  têm situado as origens do ataque contra a “ideologia de gênero” no Vaticano e no campo mais alargado de seus aliados políticos.  Tendo como ponto de partida projetos anteriores, como a catequese em torno à Teologia do Corpo promovida por João Paulo II, ou da Nova Evangelização, a ideologia foi concebida em resposta à Conferência sobre População e Desenvolvimento de 1994, no Cairo, e à Conferência Mundial de Mulheres de 1995, em Pequim, quando o termo “gênero” entrou no vocabulário das Nações Unidas, acompanhado das demandas por direitos relacionados com a reprodução e a sexualidade. [1]

Este discurso, que se baseia em ideias defendidas pelo Cardeal Ratzinger desde os anos 1980, ampliadas nos EUA, América Latina e Europa na segunda metade da década de 1990 e início dos anos 2000 e posteriormente transportadas textos teológicos do Vaticano como Léxico: Termos ambíguos e discutíveis sobre a vida em família e questões éticas (2003) e a Carta ao Bispos da Igreja sobre Colaboração de Homens e da Mulheres na Igreja e no Mundo (2004).
A “ideologia de gênero” não é apenas uma lente para analisar o que aconteceu na ONU nos anos 1900, mas também uma estratégia de ação política católica. Baseada na teoria do filósofo e político Antonio Gramsci sobre hegemonia cultural, essa moldura propaga a interpretação alternativa do Vaticano sobre gênero usando meios que subvertem as noções às quais essa instituição se opõe. Embora João Paulo II e Benedito XVI tenham concebido esse projeto, o Papa Francisco tem apoiado repetidamente esse empreendimento, descrevendo gênero como uma forma de “colonização ideológica”.
Perfil e composição das campanhas
Apesar do selo Vaticano, as mobilizações hoje em curso não podem ser lidas como um empreendimento exclusivamente católico pois  têm interseções com outros projetos políticos e comportam uma gama muito mais ampla de atores.  É importante lembrar que essas estratégias atuais são reminiscentes do ativismo mobilizado pela direita cristã norte americana, cujas organizações, deve ser dito, são ativas em todos os continentes e propagam redes transnacionais, como a Organização Mundial de Famílias que desde os anos 1990 vem realizando congressos na América Latina e na Europa, assim como uma conferência internacional em Doha.
Muito embora o Vaticano tenha sido determinante na elaboração do modelo de ação das campanhas anti-gênero, os atores que elas envolvem são muito mais diversos,  incluindo outros grupos religiosos, assim como vozes seculares e configurando coalizões que variam consideravelmente de acordo com os contextos locais.
Para compreender a situação europeia, por exemplo, é preciso ter em conta interseções fortes com populismos de direita. Ambas formações atacam elites corruptas e aparentam que suas pautas sejam pela defesa de ‘crianças inocentes’.  Ambas evocam o senso comum para contestar “ideias decadentes”  e clamam que “as coisas foram longe demais”, retratando a si mesmas como representantes de uma maioria que foi silenciada por lobbies poderosos.  Essa convergência explica porque, em diversos países europeus, populistas de direita se uniram a campanhas anti-gênero sem que sejam particularmente religiosos. Essa sobreposição oferece aos grupos anti-gênero um trampolim ao mesmo tempo em que alimenta discursos e sentimentos antiliberais.
Já as campanhas na Rússia e em partes da Europa que estão sob influência russa tem sido diretamente projetadas pelo Kremlin com o apoio da Igreja Ortodoxa. Como parte da maquinaria estatal, elas são instrumentalizadas para restaurar o status internacional da Rússia através da defesa global da soberania nacional e dos ‘valores tradicionais’. Polônia e Hungria seguem essa mesma trilha com o Primeiro Ministro húngaro, Viktor Orbán, sendo a cada dia mais vocal em relação ao tema gênero.
As campanhas latino americanas, por sua vez, tem características distintas. Primeiro, de maneira mais flagrante do que na Europa, a crítica à ideologia de gênero não é exatamente monopólio da direita, embora as vozes da direita estejam normalmente nas linhas de frente. Além disso, as campanhas envolvem tanto católicos conservadores e evangélicos (principalmente neopentecostais e, mais especialmente no Brasil). As vozes evangélicas, cujo peso político é relativamente mais recente, tem sido mais estridentes em relação a questões de sexualidade e gênero  e isso muitas vezes obscurece o papel intelectual da hierarquia e grupos católicos nessas cruzadas. No entanto, é preciso dizer que católicos latino americanos contribuíram de forma significativa para  o desenvolvimento do discurso e das formações anti-gênero atuais, as quais em grande medida estão apoiadas numa infraestrutura mais antiga criada pela igreja católica para combater o direito ao aborto. Finalmente, formações políticas anti-gênero também não são exclusivamente religiosas, mas abrangem atores seculares cujos perfis variam substancialmente segundo os países.. No Brasil, elas incluem políticos que estão apenas fazendo jogos de cena eleitorais, atores de extrema direita e centro-liberais articulando argumento anti-estatais com argumentos anti-gênero, mas também ativistas de classe média que aspiram por uma ordem social autoritária e ainda um ativismo da direita judaica com conexões transnacionais fortes..

As campanhas anti-gênero são eficientes precisamente porque amalgamam atores que normalmente não atuariam juntos.

Em que se pese essa diversidade, o enquadramento analítico do populismo muito usado na Europa e nos EUA para analisar o fenômeno é inapropriado. Como se sabe, as práticas populistas são profundamente enraizadas na cultura política regional e, entre nós, o populismo não pode ser facilmente plotado nas configurações clássicas de esquerda e direita. [2]
Uma constelação complexa
Movimentos anti-gênero comportam uma constelação complexa de atores que ultrapassa de muito afiliações religiosas específicas. Pesquisas tem revelado que a ‘ideologia de gênero’ é um sintagma vazio, que mobiliza facilmente diferentes medos e ansiedade em contextos específicos e que,  portanto, pode se amoldar a aos mais variados projetos políticos. Além disso, como salientam os autores Andrea Peto, Eszter Kováts, Maari Põim e Weronika Grzebalska, o atributo vago de ”ideologia de gênero” é como uma “cola simbólica” que favorece a cooperação entre atores heterogêneos apesar de suas muitas divergências.
É precisamente isso que deve ser compreendido: quais são as constelações específicas de atores em cada contexto e como diferentes categorias de atores, que geralmente não atuam juntos e até mesmo competem entre si, podem encontrar uma base de afinidades comuns sobre a qual colaborar?
Resumidamente, como explicar empreendimentos conjuntos entre fiéis e ateus, católicos e russos ortodoxos, evangélicos latino americanos, ou mesmo entre vertentes que estão em oposição no âmbito do catolicismo romano contemporâneo? É preciso reiterar que não estamos frente a um embate entre crente e ateus e, sobretudo,  que nem todos os fiéis de cada denominação religiosa específica,  cujas vozes podem fazem fazer parte dessa formação,  estão envolvidos nas campanhas ou comungam dos sentimentos anti-gênero.
Um enquadramento analítico mais fino do fenômeno permite que tomemos distância das molduras simplistas como populismo, direita global ou reacionarismo global, e nos aproximaria da especificidade da formação política em jogo nesse terreno. Também evitaríamos enquadramentos binários que se restringem à oposição entre “nós” e “eles” e que, inapropriadamente, homogeneízam as distintas condições contextuais e a complexa correlação de forças e atores.
Por fim, contextualização e de complexificação não são apenas requisitos analíticos, são parâmetros políticos fundamentais. Como dissemos antes, as campanhas anti-gênero são tão porque amalgamam atores que normalmente não operam juntos.  É crucial hoje compreender mais amplamente como essas “misteriosas” coalizações tem sido forjadas e sustentadas.
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[1] Ver Sonia Corrêa (2018)  “A política do gênero: um comentário genealógico”  em Cadernos Pagu.
[2] Nesse aspecto, sugerimos o artigo de Lena Lavinas Populism has no Side publicado em inglês na Open Democracy.
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Sonia Corrêa é pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, onde é co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e uma das editoras da Global Queer Politics Series (série Políticas Queer Globais) da Editora Palgrave.
David Paternotte é professor titular de Sociologia e Estudos de Gênero na Université libre de Bruxelles, onde é o coordenador do Atelier Gênero(s) e Sexualidade(s) e do departamento STRIGES. Suas publicações incluem a monografia Reivindicar o “casamento gay”: Bélgica, França, Espanha (2011), além de numerosos artigos, capítulos e volumes editados, incluindo o mais novo Campanhas Anti-Gênero na Europa: Mobilizando contra a Igualdade (2017). Ele é também co-editor da Global Queer Politics Series (série Políticas Queer Globais) da Editora Palgrave.
Roman Kuhar é professor de Sociologia na Universidade de Ljubljana. Anteriormente, ele trabalhou  como pesquisador no Peace Institute e como co-editor do relatório anual do Monitor da Intolerância. Ele também trabalhou como jornalista na Radio Slovenia de 1993 a 2000.
Este artigo foi originalmente publicado em inglês na revista International Politics and Society

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