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terça-feira, 31 de julho de 2018

Posvenção: uma intervenção dolorida, porém necessária

Karina Okajima Fukumitsu é pós-doutora pelo Instituto de Psicologia (IP-USP) e psicoterapeuta
27/07/2018

Desde 2005, quando da publicação da obra Suicídio e Gestalt-terapia[1], declarei-me suicidologista, principalmente porque queria incluir, nas lides acadêmicas de profissionais da saúde, aulas sobre manejo do comportamento suicida, prevenção ao suicídio e acolhimento ao luto por suicídio. Nesse período, recebi muitas críticas por querer trazer à tona um assunto considerado tabu. Sentia-me realizando um “trabalho de formiga”, sempre no contrafluxo de colegas da profissão que, inclusive, advertiam que eu “seria rejeitada por alguns psicólogos por insistir em falar de um tabu”. Além disso, tive a recusa de três editoras para publicar meu primeiro livro sobre suicídio, com a alegação de que “era um assunto que não teria interesse mercadológico”. Nunca imaginei que 13 anos depois de eu ter recebido a primeira negativa editorial, o cenário mudaria tão bruscamente.

Desiludida com a ausência de apoio de políticas públicas para a prevenção ao suicídio e considerando a demanda da prática clínica, na qual recebia várias pessoas enlutadas pelo suicídio, decidi me aprofundar nos ensinamentos de Shneidman (1973, 1985, 1993, 1996, 2001).

Direcionei meus estudos para a compreensão do processo de luto por suicídio tanto no doutorado (2009-2013), no qual pesquisei o processo de luto de filhos de pessoas que se mataram, quanto no pós-doutorado (2013-2017), pelo qual ampliei o escopo dos estudos sobre a posvenção com a pesquisa “Cuidados e intervenções aos sobreviventes enlutados pelos suicídios”. Dessa maneira, mudei meu foco de pesquisa com o intuito de cuidar das “pessoas que ficaram, que estavam vivas e que precisavam encontrar forças para continuarem vivas”. Essas pessoas eram os enlutados e as famílias, cujas preocupações contínuas têm relação com familiares que tentam se matar.
Iniciado a partir do suicídio de uma pessoa que há pouco estava viva e de um momento para outro está morta, o processo de luto se torna uma fase delicada. Durante o luto, os dias se tornam intermináveis pela montanha-russa dilacerante. O luto corrói, machuca e faz com que duvidemos se um dia haverá algum momento em que o sofrimento cessará. Por esse motivo, a frase “quem mata quem, quando acontece o suicídio?” (Fukumitsu, 2013, p.69) se faz presente diariamente na vida daquele que foi impactado pelo suicídio de um ente querido.
No luto é escancarado um sofrimento que fica por muito tempo em carne viva e por esse motivo a pessoa que se matou se mantém pela dor, lembrança do ato suicida e pela constante busca de explicações. No luto, normalmente não usamos maquiagem nem adereços que nos enfeitam. É o estado mais “puro” em que evidenciamos nossa fragilidade.
Postvention é o termo proposto por Edwin Shneidman (1973; 1985; 1993), cujo foco principal é destinado a promover ações que se ocupam dos enlutados após o suicídio de uma pessoa querida e que, segundo ele mesmo em outra ocasião (2008, p. 23, tradução nossa), visam a “uma vida mais longa, mais funcional e menos estressante do que seria a expectativa de viverem [após serem impactados pelo suicídio]”. No Brasil, ainda não encontrado no dicionário da língua portuguesa, o termo posvenção tem se tornado gradualmente conhecido.

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Iniciado a partir do suicídio de uma pessoa que há pouco estava viva e de um momento para outro está morta, o processo de luto se torna uma fase delicada
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Em curso Suicídio e luto: uma tarefa da posvenção, fui questionada sobre os requisitos necessários para que um profissional pudesse se habilitar como “especialista em processo de luto por suicídio”.

Certamente não tenho a resposta final, mas ousei ofertar neste artigo algumas das reflexões a respeito dos aspectos importantes para aquele que têm a intenção de se dedicar às ações da posvenção. Para que nos aprofundemos na compreensão do processo de luto por suicídio, o profissional não deve se limitar apenas em ter simpatia pelos estudos da prevenção e posvenção ao suicídio, tampouco empatia pela pessoa em processo de luto, pois dificilmente poderemos nos colocar no lugar daquele que foi impactado pelo suicídio, como afirmado em crônica A busca de sentido no processo de luto: Escuta, Zé Alguém (Fukumitsu, 2014, p. 59): “O sentido pertence ao ‘sentidor’, a quem considero aquele que sente a dor”.
Questionamentos sobre “se algum dia a pessoa em luto voltará a sorrir novamente?”, “se as saudades continuarão a aumentar ou se diminuirão a cada dia?”, “se o inconformismo a respeito de a pessoa amada ter se matado passará?” expressam a desesperança, o ceticismo e a sensação de que o sofrimento nunca passará. Perguntas que não me sinto capaz de responder, pois acredito que o suicídio seja como um quebra-cabeças que nunca se formará, porque a pessoa que se matou levou a peça principal. Como afirmo: nunca somos os mesmos depois de um tsunami existencial acontecer.
Entendo que a práxis da posvenção transcende os limites temporais que comumente acompanho com alguns clientes em minha prática clínica, na qual percebo que assim que a pessoa encontra um bem-estar em sua maneira de viver, finaliza seu processo. Atendendo pessoas enlutadas pelo suicídio, percebo que o bem-estar é um dos únicos estados que a pessoa está aquém de ter a experiência. Pelo contrário, é um constante mal-estar, pois o suicídio não leva apenas a pessoa que nunca mais o enlutado verá.
O suicídio leva também os sonhos, as expectativas, os vínculos afetivos que foram abruptamente interrompidos e, por esse motivo, considero que, no trabalho de acolhimento ao sofrimento provocado pela morte repentina e violenta, o estar junto no torpor, tristeza, falta de respostas, raiva, culpa e arrependimentos faz total diferença. É preciso viver com compaixão, que segundo Nouwen (2007, p.69) significa “entrar nos momentos sombrios do outro. É penetrar em lugares de dor, é não recuar ou desviar os olhos quando alguém agoniza. Significa permanecer onde pessoas sofrem. A compaixão é o que nos impede de dar explicações fáceis e ligeiras diante da tragédia na vida de alguém que conhecemos ou amamos”.
O respeito para com a dor de outrem sem querer interferir nem dar conselhos e auxiliar o enlutado a se auto-respeitar são algumas das principais intervenções do processo de luto por suicídio. Acima de tudo, repito o que afirmei em estudos anteriores: “o que conforta talvez não seja realmente o tempo, mas sim o sentido das vivências que tivemos com as pessoas que morreram” (Fukumitsu, 2014, p.59).
Meu sonho seria o de não precisar falar sobre posvenção, pois atinge diretamente minha impotência e sofrimento por acompanhar inúmeras vidas interrompidas e inúmeras vidas que se fragmentaram em virtude dos suicídios de pessoas amadas. Difícil realidade e, por isso, a posvenção nos convida a pensar sobre o aspecto de ser uma intervenção dolorida, porém necessária.
Que a prevenção ao suicídio seja cada vez mais expandida e ampliada para que a posvenção não seja necessária e tão frequente.
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Referências

Fukumitsu, K. O.  (2013). Suicídio e Luto: histórias de filhos sobreviventes.São Paulo: Digital Publish & Print.
Fukumitsu, K. O. (2014). “A busca de sentido no processo de luto: escuta Zé Alguém”. Revista de Gestalt, v. 19, pp. 59-61.
Nouwen, H. (2007). Transforma meu pranto em dança: cinco passos para sobreviver à dor e redescobrir a felicidade. Rio de Janeiro: Thomas Nelson.
Shneidman, E. (1973). Deaths of man. New York: Quadrangle.
Shneidman, E. (1985). Definition of suicide. Michigan: Wiley.
Shneidman, E. (1993). Suicide as Psychache: a clinical approach to self-destructive behavior. London: Jason Aronson.
Shneidman, E. (1996). The suicidal mind. Oxford: Oxford University Press.
Shneidman, E. (2001). Compreending suicide: landmarks in 20th-Century Suicidology. Washington: American Psychological Association.
Shneidman, E. (2008). A commonsense book of death: reflections at ninety of a lifelong thanatologist. United Kingdom: Rowman & Littlefield Publishers, Inc.
[1] Republicada em 2012 com novo título. Versão de 2005 intitulada “Suicídio e psicoterapia: uma visão gestáltica”. Campinas: editora Livro Pleno.

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