– ON 03/07/2018
Outras palavras
Agora no México, teórica do feminismo anticapitalista sustenta: trabalhar fora não libertou a mulher de nada; é preciso exigir remuneração do trabalho doméstico e divisão das responsabilidades reprodutivas
Entrevista a Gerardo Esparza, no Intoformador | Tradução: Inês Castilho
Centenas de mulheres abarrotam o auditório Salvador Allende, em Jalisco, México. Nos corredores, jovens amontoam-se ansiosos por escutar suas reflexões. Fora, com a esperança de pescar alguma ideia, permanecem mais alguns. Quem os convoca é Silvia Federici, que revolucionou as ideias sobre a exploração que o capitalismo fez das mulheres. Preparando-se para proferir a conferência “A guerra contra as mulheres e as novas formas de acumulação capitalista”, uma hora antes a escritora de Calibán e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva e Revolução no ponto zero: trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas concedeu uma entrevista a este órgão de mídia.
Desde quando o corpo das mulheres vem sendo considerado como objeto e símbolo de transação monetária?
Gosto de falar sobre os períodos históricos que conheço, por isso posso dizer que a partir do desenvolvimento do capitalismo a mulher se converteu em mercadoria: a ser vendida na rua e no casamento, de modo que na história do capitalismo foi muito difícil conceber o mesmo tipo de exploração, a das mulheres e a dos homens assalariados. As mulheres sempre precisaram garantir sua sobrevivência vendendo seu corpo.
As mulheres agora trabalham, mas continuam presas ao trabalho doméstico. Não houve mudança significativa na emancipação pelo trabalho: o capitalismo ganhou essa batalha?
Não acredito, não gosto de falar de uma derrota das mulheres. Posso mudar um pouco a articulação, dizendo que a premissa de grande parte do movimento feminista, de que com o trabalho fora de casa as mulheres poderiam transformar sua posição, não se verificou. Claro que uma minoria de mulheres conseguiu trabalho melhor remunerado, mais valorizado, como as mulheres que agora trabalham na universidade ou que estão no sistema de saúde. Mas a maioria foi integrada aos níveis mais baixos da organização capitalista, tanto que a maior parte não obteve autonomia econômica: devem fazer dois ou três trabalhos ao mesmo tempo e vivem endividadas.
Com o ingresso das mulheres no mercado de trabalho, as tensões entre homens e mulheres aumentam, assim como a violência doméstica. Qual deveria ser a estratégia do feminismo para romper essa inércia?
Creio que já se conseguiu muita coisa. Hoje, apesar de tudo isso e de que a violência masculina é medo da concorrência, é preciso mudar o sentido da organização material do processo de reprodução. Duas coisas estabeleceram a relação das mulheres com os homens de forma muito negativa. Por um lado, a identificação das mulheres com um trabalho desvalorizado, como se não fizessem nada, e isso parece natural porque quem produz são os homens.
Em segundo lugar, porque as mulheres foram convertidas em servas dos homens – e isso necessita ser rompido – penso que não é suficiente as mulheres trabalharem fora de casa. É importante transformar o próprio campo da reprodução, revalorizar o terreno da reprodução. Não como faz o capitalismo com o Dia das Mães, mas compreender a importância desse trabalho e que ele não pertence só à mulher. É um trabalho muito importante, porque trata-se de criar novas gerações, o novo mundo.
No México as mulheres jovens e trabalhadoras são assassinadas sistematicamente. São elas as novas bruxas, as jovens que buscam independência por meio do trabalho mais abusivo do sistema, como o da fábrica?
A caça às bruxas tem atacado de tantas formas a vida das mulheres que, se pensamos nessa caça como perseguição, cujo objetivo é reduzir e romper o poder social das mulheres, podemos dizer que os assassinatos em Cidade Juarez são parte de uma nova caça às bruxas. Hoje o capitalismo ataca brutalmente o poder social das mulheres, e o faz por muitas razões: porque precisa reduzir o custo do trabalho, obriga as mulheres a dar muito trabalho e reprodução sem pagamento, e com pouco pagamento fora de casa. É um sistema estruturalmente fundado na desvalorização da condição das mulheres e por isso necessita tanto da violência. Essa violência manda uma mensagem: “Cuidado, não temos limites”. Com isso aterrorizam toda uma população, porque as mulheres representam a vida, representam a reprodução.
Quem é a nova inquisição? Quem continua “queimando” as mulheres?
A violência individual existe porque o Estado permite, a delinquência é grande entre os homens porque eles sabem que vão ficar impunes. Por exemplo, sabemos que a militarização da vida estimula a violência contra as mulheres. Uma forma de acumulação capitalista como o extrativismo impulsiona essa violência. Como eu disse antes, a organização da reprodução, que coloca em casa uma serva para o homem, porque ele tem o poder do salário, isso incentiva a violência. Por isso é que tem sido tolerada pelo Estado. É importante enxergar isso, não ver somente a violência individual, mas sobretudo a violência institucional.
As mulheres em cargos de poder, casos como o de Angela Merkel, da ex-secretária de Estado Hillary Clinton ou de Christine Lagarde, diretora-geral do FMI, não representam as mulheres trabalhadoras, as que lutam por mais direitos – mas o sistema hegemônico. É de se esperar que as mulheres que chegam ao poder possam reverter anos de opressão ou elas terminarão por dobrar-se aos desejos do capital?
Elas atuam segundo a lógica masculina. As mulheres capitalistas não são diferentes dos homens, ao contrário. Por exemplo, hoje nos Estados Unidos, quando se trata de dar uma notícia suja, é sempre uma mulher quem dá – a mulher empresta um rosto suave e gentil a isso. Temos verificado, depois de décadas, que o acesso da mulher ao poder não muda as coisas.
A ascensão da direita na Europa e na América vem revogar direitos já conquistados e pretende, novamente, legislar sobre o corpo da mulher. A via eleitoral é a mais adequada para recuperar esses direitos?
Não acredito, há muitas vias e não creio que a eleitoral seja das mais importantes. Fiquei muito feliz com o que os zapatistas fizeram, porque eles têm um conceito de campanha eleitoral muito diferente do conceito dos partidos tradicionais. Eles não a entendiam como tomada do poder, mas sim como forma de entrar em contato com as pessoas. E não acredito, porque temos visto muitas vezes, que os que nos prometem que serão diferentes não são. Temos o caso de Obama, para mim emblemático. As pessoas choravam quando ele foi eleito.
Todos pensavam na revolução, mas depois vimos que os movimentos têm sido desmontados. Penso que o único poder é o de baixo, o sistema responde positiva ou negativamente às mensagens que chegam de baixo: se o poder está embaixo podemos buscar legislações mais amplas; se o poder não está embaixo, podemos ter todas as perguntas, todas as estratégias, as demandas e as reivindicações mais interessantes do mundo, mas se o tecido social não é fortalecido, não se irá conseguir nada.
Recentemente Maria de Jesús Patrício, Marichuy, não conseguiu as assinaturas necessárias para candidatar-se à presidência do México. Em um país em que ser mulher e indígena é um sinal de exclusão e pobreza, por qual razão não acolhemos projetos que nos representem a todos?
O zapatismo tem conseguido um êxito que já é legendário. Não conheço outro movimento social que, com tanta escassez de recursos e com um espaço que parece tão isolado, tenha conseguido impactar as atividades, o discurso político, a imaginação de milhões de pessoas em todas as partes do mundo. Não há movimento que tenha sido capaz de conseguir o que os zapatistas conseguiram. Você vai a Nova York, a Joanesburgo, à Grécia e todos conhecem os zapatistas. E muitos deixaram de fazer o que faziam para ir a Chiapas inspirar-se. Outra coisa que me parece fenomenal é que os zapatistas conseguiram algo que nem as Nações Unidas, com outros recursos, conseguiram: abriram as portas de suas comunidades a milhares de pessoas de todo o mundo com a “Escuelita” e o “Encontro Intergaláctico”.
Quem são os aliados das bruxas da modernidade?
Os novos aliados são todos os que estão se mobilizando pela defesa do meio ambiente e da natureza, das matas e da água, que são parte da reprodução da vida. Espero também, e isso é uma mensagem, que todos os companheiros se envolvam na criação de um mundo mais justo e mais solidário e apoiem a luta das mulheres, que se comprometam diretamente. Que se envolvam para mudar o comportamento dos outros homens que seguem sendo machistas, violentos.
Creio que os homens não entenderam que o poder que ganharam sobre as mulheres foi pago com a dependência do capitalismo. Todas as vezes que um homem entra em greve, ele pensa: “Devo manter minha esposa e meus filhos”. O poder dos homens sobre as mulheres serviu para pacificar os homens, para dar-lhes a ilusão de ter um poder que não têm. Esta mensagem merece que eles reflitam sobre isso: se continuam como serventes, eles mesmos, do capital, e mantêm sua masculinidade e dignidade às custas das mulheres; ou se preferem crescer juntos, em posição igualitária com sua companheira, numa sociedade mais justa e diferente.
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