Marina Ganzarolli
Quarta-feira, 18 de julho de 2018
Universidade Federal de Goiás demite professor acusado de estupro, enquanto o Tribunal de Justiça de São Paulo decide nesta quinta se mantém a absolvição do médico e ex-aluno da USP, Daniel Tarciso da Silva Cardoso, acusado pelos estupros da Medicina
Na última quinta (12) foi finalmente publicada a demissão do ex-professor Rogério Elias Rabelo da Universidade Federal de Goiás, do campus de Jataí.[1]Em 2017, Rogério foi denunciado por estupro e assédio sexual contra três alunas. Sua demissão é o resultado de um longo caminho, percorrido com altos custos para todas as envolvidas, em especial para as sobreviventes. Não existe “final feliz” em caso de estupro, mas o mínimo de reparação que se pode esperar é que a Justiça seja feita. Depois de 14 meses de Processo Administrativo, podemos falar com muito orgulho: vitória em Goiás!
São Paulo já não pode dizer o mesmo. Na manhã desta quinta (19), no Tribunal de Justiça de São Paulo, será julgado o recurso contra a absolvição do ex-aluno e hoje médico Daniel Tarciso da Silva Cardoso.[2] Fruto de uma história igualmente assustadora, este caso chocou a comunidade acadêmica, durante a CPI das Violações de Direitos Humanos nas Universidades Paulistas, que não à toa, ficou conhecida como CPI dos Trotes. Acusado de pelo menos seis estupros e com histórico de comportamento violento, Daniel foi absolvido em primeira instância pelo juiz Klaus Marouelli Arroyo, da 23a Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 7 de fevereiro de 2017, por falta de provas. A palavra da vítima contra a palavra do agressor. Um caso paradigmático da ineficácia da resposta do Estado, do Judiciário e das Universidades à violência sexual contra a mulher.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada cinco mulheres com menos de 18 anos já foi vítima de estupro ou outra violência sexual. No Brasil, as mulheres adultas representam 32% das vítimas e é entre elas que ocorre a maior prevalência de agressores desconhecidos ou de fora do seu círculo afetivo. Duas em cada 13 vítimas já sofreu estupro coletivo e, segundo o Atlas da Violência 2018, as mulheres brasileiras são vítimas de estupro mais de uma vez na vida: de cada 10 vítimas atendidas pela rede de saúde em 2016, quatro já tinham sido estupradas antes.[5]
Ainda que os dados não sejam precisos, estima-se que sejam cometidos meio milhão de estupro por ano, dos quais apenas 10% são notificados.[6] Com tamanha sub-notificação, é seguro afirmar que a maioria dos casos de estupro não são registrados oficialmente e, portanto, não são sequer considerados nas estatísticas.[7] Considerados um dos maiores problemas para o enfrentamento da violência sexual contra a mulher, a sub-notificação só ocorre porque persistem as barreiras culturais e sociais que oprimem as mulheres. Existe um custo muito alto que a vítima que denuncia seu agressor tem que arcar sozinha. A revitimização, a culpabilização, as novas violências, os exames, os custos com advogada, transporte até delegacia, audiência, saída do trabalho, a necessidade de falar sobre o assunto várias vezes e para diversas pessoas, a possibilidade de absolvição do agressor, de ser processada por ele por difamação, para citar apenas alguns.[8]
Nos casos de Goiás e São Paulo não foi diferente.
Graças ao suporte desta rede de mulheres, mesmo que sob enorme pressão e enfrentando todos os sintomas de estresse pós-traumático, as sobreviventes denunciaram o professor criminalmente na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Goiânia e recentemente foi aceita a denúncia por estupro de vulnerável das duas alunas pela 8ª Vara de Criminal de Goiás – Crimes Punidos com Reclusão, onde aguarda julgamento.[10]
No caso de São Paulo, a mesma omissão: a vítima procurou a Justiça em 2012, mas o caso só foi investigado pela Universidade depois da CPI, em 2014, instaurada por iniciativa do então Deputado Estadual Adriano Diogo. A investigação da CPI do Trotes, levada à cabo graças a uma iniciativa externa à Universidade, documentou denúncias de racismo institucional e de uma cultura do estupro, concluindo que “112 estupros em 10 anos” teriam sido cometidos “no chamado ‘quadrilátero da saúde’, área da USP onde estão concentradas, no Bairro de Pinheiros, na Capital paulista, as faculdades ligadas às Ciências Médicas”.
Após a CPI, Daniel Tarciso foi suspenso um ano, e depois novamente por seis meses. Mas acabou se formando em cerimonia arranjada na surdina em fevereiro de 2017. Teve o registro médico negado pelo CREMESP, mas conseguiu obtê-lo em Pernambuco e hoje exerce a prática médica na cidade de São Paulo normalmente.
Uma das únicas sobreviventes que se dispôs a denunciá-lo formalmente foi chamada a depor no processo administrativo pelo menos 8 vezes ao longo de 2 anos. Existem vastas pesquisas que demonstram as consequências do estresse pós-traumático nos depoimentos de vítima de violência sexual, que são usualmente fragmentados e não-lineares. Cada vez que a vítima conta o episódio de violência ela revive as sensações do evento traumático, sentindo culpa, nojo, medo, asco, tudo vem à tona novamente. Exigir essa quantidade de depoimentos de uma sobrevivente é tortura. E ainda assim ele não foi jubilado da USP. Pelo contrário, estamos assistindo de camarote a emergência do próximo Roger Abdelmassih.
Mas antes que a Universidade possa ser um lugar mais acolhedor para as mulheres no futuro, uma sobrevivente de estupro que, contra tudo e contra todos, escolheu denunciar seu agressor, teve que ver seu abusador se formar e sair ileso. Teve que ouvir de um juiz de direito que sua palavra não valia o suficiente, que ao concordarem entrar no apartamento do réu ela muito provavelmente consentiu com o ato sexual. Ela abandonou o curso, ficou doente (quem não ficaria?) e hoje sua mãe estuda Direito, numa tentativa desesperada – e comovente – de tentar entender o porquê sua filha não viu Justiça ser feita contra seu algoz.
Amanhã, às 9h na manhã, em frente ao Tribunal de Justiça, acontecerá um ato pela condenação do Daniel.[12] O desembargador Mauricio Henrique Guimarães Pereira Filho da 5a Câmara de Direito Criminal, tem a chance de mudar essa história. Ele marcou às pressas o julgamento da apelação, entre férias, Copa do Mundo e eleições, ao que poderia parecer à distância, uma manobra para engavetar o caso. Em nome desta vítima e de todas as mulheres que sofreram ou não violência, espero que eu esteja errada.
Marina Ganzarolli é advogada, doutoranda e mestra em Sociologia Jurídica pela FDUSP, cofundadora da Rede Feminista de Juristas – DeFEMde, foi depoente na CPI dos Trotes e uma das primeiras a conversar com uma das sobreviventes de Goiás.
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