Se muito terreno já foi ganho, o igualitarismo continua a ser uma quimera
PAULO ROBERTO PIRES
28/06/2018
Em 2012, Dilma Rousseff inaugurou no Palácio do Planalto uma exposição reunindo obras de Caravaggio. Foi flagrada contemplando a célebre Medusa do mestre italiano de costas para a câmera, como se a pintura fosse seu reflexo num espelho.
O meme nasceu pronto e, aos olhos da historiadora inglesa Mary Beard, enquadra-se numa deprimente tradição de associar mulheres líderes à monstruosa criatura mitológica que, temida por seu olhar petrificante, é decapitada por Perseu. Não por acaso, Hillary Clinton, Angela Merkel e Theresa May também foram retratadas tendo um ninho de serpentes como cabelo — e devidamente subjugadas por um homem.
É no trânsito crítico entre a atualidade imediata e os fundamentos da cultura clássica que a professora de história de Cambridge expõe seu vigoroso feminismo em Mulheres e poder (Crítica Editorial). Tendo como subtítulo “um manifesto”, o livrinho é militante no melhor sentido do termo. Reúne duas conferências que, com clareza e concisão, examinam momentos decisivos no silenciamento sofrido pelas mulheres ao longo dos séculos. Beard expõe as relações entre a voz da mulher e a esfera pública e, depois, examina o renitente preconceito contra sua presença em cargos executivos.
Se muito terreno já foi ganho, o igualitarismo continua a ser uma quimera.
Nessa breve história do cala-boca, misoginia é a palavra-chave. Porém, segundo Beard, insuficiente para dar conta dos intricados movimentos iniciados quando Telêmaco, na Odisseia, ordena que a mãe, Penélope, se recolha e pare de criticar um bardo que vem a sua própria casa. “Discursos são coisas de homem, de todos os homens, e meu, mais do que qualquer outro, pois meu é o poder nesta casa”, diz o filho de Ulisses, autoproclamado “chefe” da família enquanto o pai se desdobrava na trabalhosa função de herói. De lá para cá, é ladeira abaixo.
Autora dos substanciosos Pompeia — A vida de uma cidade romana e SPQR — Uma história da Roma antiga, Beard não faz de sua especialidade um ponto de vista privilegiado. O Ocidente, observa ela com bom humor, felizmente não deve tudo a gregos e romanos, mas os debates e estratégias de discurso da vida pública ainda são fortemente tributários de Cícero e Aristóteles. E, não se pode esquecer, que à mulher de então só era permitido falar como vítima ou defensora da família, para que tratasse, enfim, de assuntos tidos e havidos como “femininos”.
Interessada nessas “operações retóricas”, Beard destaca que as primeiras mulheres a tomar a palavra, em manifestações que inspiram e fundam os feminismos pioneiros, ainda o fazem sob a vigência dessa “autorização”. A coisa fica muito mais complicada quando assumem lugares que não lhe foram concedidos pela cultura masculina. Não se é presidenta ou primeira-ministra “das mulheres”, mas assume-se a cabeça de um mandado democraticamente constituído.
Não é raro, ressalta Beard, que, uma vez no poder, mulheres continuem obedecendo a um “modelo mental” masculino. Terninhos são mais frequentes do que saias ou vestidos, marqueteiros trabalham para que se engrosse o timbre de voz de autoridades e tantas outras providências são tomadas para reviver Mécia, uma das raras mulheres a falar no fórum romano — e em quem, acreditavam os cronistas da época, subsistia uma “natureza masculina”.
O incômodo com a voz feminina manifesta-se ainda hoje em qualquer instância, dos altos cargos a posicionamentos veementes em redes sociais. A cada vez que participa de algum debate na televisão, Beard se prepara para os ataques — que acontecem sobretudo no Twitter, onde mantém uma ativíssima conta. A trollagem, lembra, é sobretudo masculina e tanto mais violenta quando tem uma mulher como alvo.
Mary Beard está longe de ser catastrofista, mas não cede em nenhum momento ao otimismo. Mais do que ocupar lugares, defende, as mulheres devem atentar às fissuras no discurso masculino para de fato subvertê-lo. No início deste mês, ela mesma foi criticada por aceitar a comenda máxima do trono inglês. Mas Dame Mary Beard foi em frente. Prefere ressaltar que o título homenageia sua dedicação à Antiguidade Clássica, campo pouquíssimo trilhado por mulheres. E menos ainda por mulheres com sua disposição ao combate intelectual cerrado.
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