Justificando
Quarta-feira, 18 de julho de 2018
Uma Vitória de todas(*)
“Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos”.
Esses versos de João Cabral de Melo Neto nos fizeram levantar e vir para o computador. Nossa colunista de hoje está praticando a maternidade e não pode escrever. Nossa colunista ganhou uma filha, ganhou a Vitória.
Esperada por tantos anos, cinco longos anos, para uma e para outra – a mãe esperou na fila por cinco anos. A filha tem quase seis e aguardou pela adoção desde os dois meses –, chegou às vésperas da estreia da mãe, em 2018, na Sororidade em pauta.
Chegou de surpresa, confirmando a imponderabilidade da vida, principalmente a da mulher. E nós como mulheres que somos também fomos surpreendidas com a necessidade dessa escrita repentina, mas carregada de emoção. Bons são os motivos que levaram nossa colunista a não poder cumprir o compromisso.
Isso nos leva à reflexão sobre quantas mulheres, ou melhor, que mulher não teve em algum dia na vida, que ter que escolher entre compromissos profissionais e maternidade. Essa atribuição inerente à mulher, atender às demandas dos filhos, da casa e também às do trabalho.
Sempre ela. O sexo frágil que dá conta de tudo, ou pelo menos deveria, diz a sociedade implacável. Afinal, quem mandou ter filhos? Quem mandou trabalhar? Quem mandou casar? Se não tinha condições de assumir tais responsabilidades, não escolhesse essa vida. E assim vamos seguindo. Tentando resolver todas as questões, sempre nos sentindo em dívida e sempre culpadas.
Mas o que fazer quando uma de nós se vê nessa situação e, nos pede desculpas por não poder escrever, porque ganhou uma filha? Tornar-se mãe não é tarefa simples. Ninguém está preparada. Tornar-se mãe adotiva tem suas peculiaridades e a principal delas é que a mãe biológica vive a ilusão de que se prepara durante a gravidez, para depois ver que isso não é bem assim¹.
Mas hoje vamos nos deter a história da nossa colunista que, por conta da chegada esperada e ao mesmo tempo inesperada, de sua filha não teve como “honrar” com o compromisso da escrita. Vitória ganhou uma mãe. Uda ganhou uma filha. Mas a história dessas duas mulheres merece ser escrita.
A nós coube juntarmos nossas mãos para dividir com nossos leitores e leitoras a alegria desse momento e para nos unirmos a fim de escrever esse texto, onde cada uma tece um pouco o fio de solidariedade, de carinho e união, que nos torna fortes, que nos conforta e nos acolhe.
Ao nos contar que não daria conta, Uda assim descreveu os primeiros dias de sua maternagem:
“Olá! A Vitória – que nome mais apropriado a toda a nossa situação atual! – chegou na nossa casa na última sexta-feira. Ela tem sido maravilhosa: extremamente carinhosa com todos e amiga da mana Marina. Gosta muito do colo da mamãe. Tem quase 6 anos. Antes de vir para nós, Vivi passou por outra família, que a rejeitou porque ela cantava e fazia barulho perto do irmão mais velho, que recém entrara na faculdade e “tinha que estudar”. Vivi estava abrigada desde os 2 meses de idade. Como não conviveu com os pais – imagino que essa seja a razão –, Vivi sempre chupou muito o bico e mamou bastante na mamadeira. E essa última família tirou o bico e a mamadeira dela sem gradação, de sopetão. Resultado? Ela passou a chupar o dedo. E não só para dormir, mas de dia também. Gosta muito do mamá e de se aconchegar no meu colo, então optamos por manter o mamá, mas em copinho, não retornando à mamadeira. Mas o bico, este decidimos dar de volta, para recomeçarmos o processo visando a retirá-lo. Em um ambiente seguro e com amor, ela vai conseguir deixar o bico gradativamente e sem sofrimento, não o substituindo por nada. Ela mama no copinho me encarando, como se fosse bebê. E ontem à noite e hoje de manhã passou as mãos nos meus seios, apertando-os, como a mana Marina (de 2 anos e meio) ainda faz, por sentir falta do mamá do peito. Primeiro, achei que era um regressão dela, mas depois concluí que ela simplesmente queria ver se eu deixaria ela passar a mão nos meus seios, já que eu deixo a Marina fazer isso, pois ela me perguntou depois: “Mãe, tu viu que eu passei a mão na tua teta?”. Eu disse: “Eu vi, filha; a Marina também faz, então vocês duas podem. Carinho pode sempre e a mamãe deixa. De tapa e mordida é que a mamãe não gosta”. Ela pergunta a toda hora se vai ficar para sempre aqui. Eu digo que sim, que é para sempre. Beijos para vocês”.
Lendo isso e pensando por outro prisma, isto é dar conta, é priorizar. Nesse momento ela faz aquilo que nós mulheres, mesmo feministas, tantas vezes não queremos abrir mão ou nos afastar – ao de decidir, por nossos corpos ou por outras vias pelo caminho da maternidade – de dar o afeto, o amor, o carinho e o cuidado que toda criança/adolescente precisa.
Mas o tema de hoje é a decisão de uma mulher de ser mãe! Decisão que traz muitas outras e ainda a de escolher que cuidar da Vitória, de si e sua segunda filha é mais urgente que escrever para esta coluna, ainda que isso lhe custe, quando, em verdade, não deveria custar, pela evidente peculiaridade e beleza do momento.
Este artigo sai assim, aos pedaços, como aos pedaços é o sono da maioria das mães, pela insônia dos filhos bebês ou pela ausência dos filhos crescidos.
Aos pedaços e às pressas porque a chegada da Vitória não pode ser planejada, ainda que esperada com tanto amor. Aos pedaços, às pressas e em conjunto, inclusive por uma também mãe adotante que assim se tornou também a partir de uma chamada telefônica, que sempre foi esperada mas que não tem a chegada comparável com nada já vivido.
Mas sai também este texto carregado de certezas, certezas das escolhas julgadas imperfeitas por quem não as necessita tomar e tomadas com tanto sofrimento desnecessário, que poderia ser aplacado pela solidariedade dos julgadores. Bem-vinda a Vitória de todas as mulheres.
Aos pedaços, acrescento que fazer manifestar mais uma vez a escritora, seja por um ato planejado, seja no rompante da inspiração que não aguenta mais o calar, é também uma decisão feminina que deve ser respeitada e aceita no tempo certo de acontecer.
Todas desejamos suas ideias, Uda, sua fala, você impressa no papel. E todas nós aceitamos a sua aceitação quanto a isso. Parimos este texto para ti. Adote-o e subscreva-o. Ele é seu filho do afeto.
(*)De: Coletivo Sororidade em Pauta
Para: Uda Schwartz
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