Um projeto do governo francês de legalizar a reprodução assistida para mulheres solteiras e lésbicas divide a classe política e a sociedade. O tema tem provocado debates sobre a falta da figura paterna na formação de uma família e a eventual "mercantilização da procriação" no país.
A reprodução assistida para todas as mulheres, antiga reivindicação de ONGs que atuam na defesa dos direitos dos homossexuais, é uma promessa de campanha do presidente Emmanuel Macron.
A medida faz parte do projeto de lei sobre a bioética, que revisará a legislação anterior, de 2011. O texto deve ser apresentado pelo governo no final de novembro.
Atualmente, na França, apenas casais heterossexuais com problemas de fertilidade comprovados clinicamente têm direito à reprodução assistida, que pode ser realizada por meio de inseminação artificial ou fecundação in vitro.
O governo já recebeu o sinal verde do Comitê Consultivo Nacional de Ética, que avaliou em um estudo que a autorização da reprodução assistida a todas as mulheres permitirá "remediar um sofrimento".
O comitê ético ressaltou, no entanto, falta de acordo entre seus membros em relação às consequências, para uma criança, "da institucionalização da ausência do pai na diversidade da sua construção psíquica".
As despesas com a reprodução assistida são cobertas pela Seguridade Social francesa. O projeto de lei deverá estender a gratuidade a todas as mulheres que recorrerem à técnica, chamada na França de PMA (Procriação Médica Assistida), o que também vem provocando debates.
Atualmente, inúmeras francesas homossexuais ou solteiras viajam ao exterior para realizar procedimentos de reprodução assistida.
Segundo estimativas do Conselho Nacional Consultivo de Ética, entre 2 e 3 mil mulheres francesas já teriam recorrido a uma inseminação artificial em outros países.
Há várias opções no continente europeu: países como Bélgica, Espanha, Reino Unido, Dinamarca, Holanda, Grécia e, mais recentemente, Portugal, já autorizam há anos a reprodução assistida para lésbicas e solteiras.
Para os defensores da mudança da lei na França, a sociedade evoluiu e as famílias também são cada vez mais diversas.
O casamento gay entrou em vigor no país em 2013, garantindo a esses casais também o direito de adotar filhos.
"Se a lei autoriza as mulheres homossexuais a adotar, por que não poderiam ter filhos por reprodução assistida?", questiona o médico ginecologista Michael Grynberg.
Segundo a associação SOS Homofobia, a medida permitiria acabar com anos de discriminação.
A ampliação da reprodução assistida seria, para os apoiadores, uma maneira de permitir a igualdade de direitos, já que nem todas as mulheres têm condições financeiras para gastar milhares de euros realizando o procedimento médico no exterior.
"Privar deliberadamente uma criança de um pai antes de sua concepção é causar um sofrimento para a vida toda", rebate Ludovine de la Rochère, presidente da associação ultraconservadora La Manif pour Tous.
Esse grupo organizou, em 2012 e 2013, passeatas para lutar contra a legalização do casamento homossexual e se mobiliza atualmente, como a Alliance Vita, contra a mudança na lei de bioética.
A extensão da reprodução assistida a todas as mulheres também era uma promessa do ex-presidente François Hollande. Mas ele abandonou a ideia devido aos protestos nas ruas contra o casamento gay.
Em uma declaração, intitulada "A dignidade da procriação", a Conferência dos Bispos da França destaca "obstáculos éticos" que afetam o bem-estar da criança e pergunta se é possível aceitar que "o homem seja considerado um simples fornecedor de material genético".
Falta de doadores de esperma
Os opositores também ressaltam que a medida pode abrir caminho para a aprovação da gestação por outrem (GPA), a chamada "barriga de aluguel", proibida na França, e ao "comércio de esperma", o que tornaria a reprodução humana uma atividade comercial.
"Parem de misturar tudo", reagiu a ministra da Saúde, Agnès Buzyn, que descartou a possibilidade de inserir no projeto de lei o tema de "barrigas de aluguel".
"A gestação por outrem é a mercantilização do corpo humano. As leis de bioética francesas são muito estritas em relação a isso", disse a ministra, se referindo ao fato de que isso continuará proibido no país.
"É melhor não acreditar que quando a reprodução assistida for autorizada para todas as mulheres, terão acabado as reivindicações que ferem eventualmente o senso moral e ético", afirma o psicanalista Jean-Pierre Winter, que participou de discussões no Parlamento francês sobre o assunto.
Na avaliação dos opositores, a gestação por outrem seria utilizada principalmente por casais de homens.
Na Grécia, a GPA é autorizada e, segundo a imprensa francesa, isso teria levado a um "turismo" destinado a encontrar "barrigas de aluguel" no país.
Outro problema apontado, inclusive por apoiadores da mudança da lei, é o risco da falta de doadores de esperma, já que o número é atualmente insuficiente no país, segundo especialistas.
A doação de esperma na França não é remunerada, diferentemente de outros países. A Agência de Biomedicina do país acaba de lançar uma campanha para a doação de gametas (espermatozoides e óvulos).
A nova lei de bioética poderá também pôr fim ao anonimato dos doadores, se eles optarem por isso. O assunto está em discussão e alguns estimam que isso poderá afugentar os futuros doadores.
O eventual aumento da demanda por doadores de esperma poderá criar um mercado paralelo da procriação, remunerado, como em outros países, afirmam os críticos.
Outro ponto polêmico é a questão do reembolso, pela Seguridade Social francesa, dos gastos médicos com a reprodução assistida.
O partido do presidente Macron é favorável ao reembolso total das despesas médicas, como ocorre com casais heterossexuais inférteis.
Mas a questão divide parlamentares, mesmo entre alguns dos correligionários do presidente. Muitos defendem que o contribuinte não deveria ter de arcar com demandas da sociedade que não são relacionadas a doenças.
"Isso não vai custar milhões de euros à Seguridade Social. Não haverá uma quantidade astronômica de pacientes", afirma o ginecologista Grymberg.
O custo total de uma inseminação artificial na França é de cerca de € 1,1 mil (R$4,7 mil), de acordo com a Agência de Biomedicina.
Pesquisas apontam que de 60% a 75% dos franceses seriam favoráveis à reprodução assistida para todas as mulheres.
Ataques homofóbicos
Há divisões em relação à ampliação da reprodução assistida dentro dos próprios partidos. Alguns parlamentares conservadores são favoráveis, enquanto outros da esquerda, que em geral apoia a mudança, são contra.
Um grupo de trabalho parlamentar, com 36 membros de diferentes partidos, vem realizando debates com especialistas sobre as mudanças na lei de bioética e deverá concluir um relatório sobre a questão nos próximos dias.
Várias agressões homofóbicas têm sido relatadas na França nas últimas semanas.
Segundo Jérémy Falédam, da ONG SOS Homofobia, isso estaria relacionado aos debates sobre a reprodução assistida. "A preocupação é reviver a mesma onda de ódio da época da lei sobre o casamento gay", diz.
O projeto de lei que irá revisar a atual lei da bioética deverá ser votado no início de 2019. O texto deverá tratar de outros temas como pesquisas com células tronco, inteligência artificial e técnicas de engenharia genética.
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