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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Como ‘Roma’, da Netflix, me fez refletir sobre a masculinidade tóxica que reproduzimos

Hypeness
por: João Vieira
Netflix está disposta a mudar a dinâmica de premiações do cinema com o lançamento de “Roma” . Na reta final de 2018, o longa, dirigido pelo mexicano Alfonso Cuarón(vencedor de dois Oscars por Gravidade), foi aclamado por crítica e público ao mostrar a vida de uma família de classe média comum no Méxiconos anos 1970 e 1971. O filmaço acaba de faturar dois Globo de Ouro neste domingo, de Melhor Filme em Língua Estrangeira e Melhor Direção para Cuarón.

Sei que já passou um tempinho desde o lançamento do filme, mas, antes de qualquer coisa, quero evitar que vocês me odeiem por dar spoilers. Então, é bom dizer que as próximas linhas apresentam spoilers importantes!
Concentrado no olhar e vivência de Cleo (Yalitza Aparicio), empregada e babá da família de classe média do bairro Roma, na Cidade do México, o longa entrega uma visão crítica do abismo social que obriga pessoas, na imensa maioria mulheres, a trabalharem em casas com acúmulo de funções e sem horário de começo e fim do expediente. A cortina de fumaça do abuso é o já tradicional “ah, mas ela faz parte da família”.
Acontece no México, acontece no Brasil. Cleo não faltam na América Latina.

Abandono parental, lá como aqui também

No entanto, o olhar do drama social de Cleo acaba perdendo um pouco de força durante o decorrer da história, inspirada romanticamente em Libo, mulher que trabalhou na casa Cuarón durante sua infância. O que não quer dizer que Roma não se posicione sobre dramas tão comuns na nossa América Latina, incluindo o tristemente numeroso abandono parental.
Em paralelo, duas histórias que trazem como ponto de encontro a falta de compromisso de homens com a paternidade. Cleo sai com Fermín (Jorge Antonio Guerrero), de quem acaba engravidando. Ao contar a novidade para o rapaz, é abandonada na sala de cinema e, mais adiante na história, ameaçada fisicamente ao encontrá-lo e pedir explicações.
Já Sofia (Marina de Tavira), patroa de Cleo, vê seu marido, o médico António (Fernando Grediaga), dizer que ficará semanas a trabalho em Quebec, no Canadá, quando na verdade está vivendo com outra mulher. Ao final, pede que a ex-esposa viaje com seus filhos para o litoral mexicano, para que ele possa pegar suas coisas sem ter que encontrá-los para dar explicações, deixando para trás a família com dívidas e sem dinheiro. Durante todo o tempo, Sofia se vê sobrecarregada com tantas mentiras que precisa contar aos filhos para evitar que eles descubram a verdade.
Em uma das cenas mais emblemáticas do filme nesse sentido, Sofia chega alcoolizada em sua casa dirigindo o carro da família, um Ford Galaxy, batendo com o veículo nas paredes da apertada garagem. Ao encontrar Cleo na porta da sala, ela diz:
“Digam o que disserem, nós mulheres estamos sempre sozinhas” (cena abaixo).
Os dramas vividos por Cleo e Sofia enquanto mães – e mulheres – acaba fazendo com que as duas se aproximem. Se no começo do filme, Sofia é retratada como uma patroa opressora – que até espia suas empregadas -, ao final, surge como uma mulher frágil, que acolhe Cleo em seu colo não só pensado em protegê-la do momento mais difícil de sua vida, como também para buscar nela forças para seguir em frente.

O tamanho da covardia: 5,5 milhões de crianças sem pai

O abandono parental é uma realidade brasileira. O maior país da América Latina possui 5,5 milhões de crianças sem registro do pai em seus documentos, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com base no Censo Escolar de 2011. 83,6% das crianças de até 4 anos por aqui tem como primeira responsável uma mulher, segundo o IBGE.
Repensar masculinidades é uma movimentação fundamental para se discutir e prospectar uma realidade com igualdade de gênero. Historicamente, a romantização de homens que abandonam suas famílias tem normalizado atitudes que jamais poderiam ser encaradas de forma tão natural. Triângulos amorosos entre um homem casado, sua esposa megera e uma amante aventureira dominam narrativas em novelas pelo continente até os dias de hoje.
Não dá pra tratar abandono parental como mera infidelidade romântica. Nem a de algum familiar seu. Também não faça do seu amigo este personagem aventureiro.
Como demonstra “Roma”, homens que abandonam filhos, seja quando eles ainda estão na barriga da companheira ou dormindo nos quartos pela casa, sem aviso prévio e abrindo mão de suas obrigações enquanto pais, deixam para trás não apenas dificuldades financeiras, mas uma fragilidade emocional sem precedentes.
Não sem motivos, os homens em “Roma” caem também no estereótipo tóxico dos guerreiros. O parceiro de Cleo que foge se exibe para ela, mostrando seu domínio das artes marciais. Essa força, a arte de guerrear, por sinal, desemboca em tragédia, em violência desmedida, em crimes contra a vida. Os homens matam e são os que mais morrem. Jamais nos esqueçamos disso.
A fragilidade emocional da mãe atinge as crianças e, principalmente, a mulher, que precisa lidar não só com o seu sentimento de tristeza e desvalorização, como ainda com o emocional dos filhos, cabendo à ela ajudá-los a superar o momento de dificuldade e encontrar alguma forma de explicar que a culpa não foi deles.
Quando abandonadas ainda grávidas, e especialmente com dificuldades financeiras, mulheres passam por um ciclo de instabilidade emocional que pode trazer complicações para a gestação e culminar, inclusive, na perda da criança.
Se o sucesso de Roma na temporada de premiações se confirmar, que o tema central do filme não se deixe apagar por questões chamativas – e importantes também -, como a belíssima direção fotográfica de Cuarón, ou a produção impecável de Gabriela Rodriguez e Nicolas Celis, que retratam o caos político mexicano de década de 1970 com sutileza e fidelidade, como o massacre de mais de 100 estudantes durante uma manifestação, provocados pelos paramilitares Los Halcones.
Que se abra mais uma chance de debater a cultura ultrapassada e violenta que construiu um modelo de homem latino-americano que precisa deixar de existir.

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