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quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Marie Curie: a vagabunda que ganhou dois prêmios Nobel

Por Marcia Barbosa, Professora Titular (UFRGS) e diretora da Academia Brasileira de Ciências
Marcia está almoçando com os colegas. Um deles trouxe o filho, Pedro, de cinco anos que acompanha atentamente a conversa dos adultos. O menino, então, interrompe o debate com uma pergunta: qual a pior ofensa que pode ser feita a uma mulher? A pergunta inusitada capta a atenção de todos. Como uma pergunta retórica, Pedro responde: a pior ofensa que podemos fazer a uma mulher é chamá-la de vagabunda. Marcia lembra quantas vezes o termo foi direta ou indiretamente usado contra ela, particularmente quando disputava algum espaço de ciência e de poder. Ela não está só neste universo de vagabundas. Ela lembra de outra cientista que teve sua vida pessoal escrutinada pela opinião pública: Marie Curie.

Nascida na Polônia em uma família de professores, Marie desejava estudar. Mulheres não eram aceitas nas universidades de seu país. Era comum naquela época pensar que mulheres com formação acadêmica seriam intimidadoras e não conseguiriam se casar. 
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O pai de Marie não pensava assim, mas como professor não tinha os recursos para manter as filhas estudando na França onde mulheres já eram aceitas nas universidades. Marie e a irmã combinam a ida para a França onde Marie trabalharia para a irmã se formar em medicina e, depois esta ajudaria Marie em seus estudos. Seguindo o plano à risca Marie trabalha como governanta e depois da irmã formada ingressa na universidade. Brilhante, logo atrairia a atenção de um jovem professor, Pierre Curie. Ela estava obcecada em compreender o mecanismo pelo qual alguns materiais emitiam energia. Pierre percebendo a genialidade da que viria a se tornar sua esposa, muda de área de pesquisa e os dois passam a trabalhar juntos. Esta colaboração daria o prêmio Nobel de Física ao casal em 1903 pelos avanços no conhecimento do mecanismo pelo qual alguns materiais emitem energia, a radioatividade. Enquanto o Nobel trazia para Pierre um emprego na prestigiosa Universidade de Sourbonne, Marie continuava atuando como assistente de laboratório.
A vida de nossa heroína enfrenta outros desafios além de não ser reconhecida com um emprego de professora. Em 1906, Pierre é atropelado e morre. Viúva e com duas filhas para criar, Marie não aceita a ajuda do Estado e sai em busca de um emprego na Universidade o que consegue por seu brilhantismo. Como docente, inicia uma nova linha de pesquisa analisando materiais que possuíam radioatividade. Ela viria a descobrir dois elementos novos para a tabela periódica, o rádio e polônio ao mesmo tempo que enfrentava o descrédito de colegas que jocosamente a chamavam de Madame Pierre Curie. Nesta época Harvard nega a Marie uma honraria alegando que ela não havia feito nada de extraordinário depois da morte do marido.
Em 1909 Marie sofre o primeiro ataque misógino e xenofóbico. Ela competia com Edouard Branly, um francês, por uma cadeira na Academia Francesa de Ciências. Os jornais locais atacam a candidatura de Marie por ela não ser francesa, enquanto tratavam com elogios o pesquisador francês que, afinal, era um bom católico apoiado pelo Papa. Os jornalistas chegaram ao extremo de propagar a inverdade de Marie ser judia, o que exaltou ainda mais os ânimos, pois o antissemitismo era forte na Europa nesta época. Os acadêmicos franceses cederam ao machismo da imprensa e Marie nunca entrou na Academia Francesa de Ciências. Curiosamente os brasileiros foram menos preconceituosos e Marie foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Ciências como membro correspondente.
Apesar de tudo, o trabalho de Marie crescia em prestígio e ela era sempre a única mulher na sala das reuniões internacionais. Em 1911, no entanto, um grande escândalo põe à prova mais uma a grande cientista. Jornais parisienses publicam cartas amorosas entre Marie Curie e Paul Langevin, um homem casado. A esposa de Langevin tinha repassado as cartas em uma tentativa de humilhar Marie. Os jornais chamam a grande cientista de destruidora de lares. As “fake news” de que ela mantinha o caso com o Paul mesmo antes do marido falecer e que isto causara sua morte e de que ela era uma judia que vinha para destruir os valores morais franceses cresciam no terreno fértil do machismo. A misoginia ataca as mulheres que se sobressaem. Neste ambiente de terror, ao voltar para casa de um evento, vê sua residência rodeada por uma turba raivosa que a chamam de vagabunda. Foge com as filhas para casa de amigos. Cientistas que apoiam Marie são perseguidos por seus chefes. É o desespero de uma sociedade que acha insuportável uma mulher inteligente.
É neste ambiente de misoginia e xenofobia que ela é agraciada sozinha com o Nobel de Química de 1911. Até hoje ela é a única pessoa que tem dois prêmios em áreas de ciência. O comitê do Nobel, no entanto, não fugiu à regra do machismo dominante. Ao perceber o impacto que a notícia do relacionamento de Marie com Paul tinha na imprensa francesa, sugerem que ela não vá à cerimônia. Afinal, as alegações de que ela era uma vagabunda deixariam o rei da Suécia, que entrega o prêmio, em uma situação desconfortável. Marie não se deixou intimidar pelo preconceito e foi receber o prêmio.
No restante de sua vida, ela viria a mostrar o seu valor não somente como pesquisadora, mas como ser humano. Ela foi parte fundamental do desenvolvimento da radiografia. Durante a I guerra mundial, ao invés de fugir para um local mais tranquilo como fizeram muitas pessoas, ela e a filha se integraram ao esforço de guerra, criando uma “ambulância” que ia ao campo de batalha gerando radiografias de partes dos corpos dos soldados franceses feridos, evitando amputações. Ela estava salvando o povo que a havia chamado de vagabunda. Marie mostrou à França e a cada uma de nós mulheres que lugar de mulher é onde ela quiser estar e que não devemos ser intimidadas pelo atraso dos que dizem que mulheres não devem estudar e pelo machismo moralista que vocifera contra mulheres brilhantes.
Marcia desperta de seu devaneio. Serenamente olha para o menino e diz: Estás enganado, Pedro, vagabunda é um elogio.

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