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sábado, 5 de outubro de 2019

Peaky Blinders sob a ótica da Criminologia

15 de agosto de 2019

Peaky Blinders

Birmingham, Inglaterra. 1919. Logo após a Primeira Guerra Mundial, a família Shelby busca expandir suas atividades ilegais e conquistar mais territórios enquanto enfrenta a concorrência violenta de gangues rivais. É nesse contexto que se ambienta o seriado britânico Peaky Blinders, que estreou em 2013 no canal BBC Two.

A trama conta com uma sequência de reviravoltas agressivas e engenhosas que envolvem a dinâmica criminosa da gangue formada pelos Shelby, a qual deu nome à série. Os Peaky Blinders (grupo que realmente existiu) foram ilustrados de forma bastante rica em termos criminológicos. Foram abordadas características bastante peculiares de organizações criminosas e gangues (que não são necessariamente a mesma coisa) na construção dos episódios, além de uma complexa construção psicológica dos personagens. 
Iniciando uma análise criminológica com base na teoria da desorganização social, podemos perceber como o território base dos Shelby apresenta características de um local com mínima presença de agentes estatais, combinada com escassa atenção governamental quanto aos problemas da pobreza, saúde, educação e segurança.
Consequentemente, podemos observar o surgimento de grupos delinquentes como uma forma alternativa de se adaptar a um contexto de infraestrutura social bastante precária. Os moradores de Birmingham sofrem com condições péssimas de saneamento e raras oportunidades de trabalho, além da violência e outras formas presentes de criminalidade (tráfico de drogas, homimcídio,  prostituição e apostas ilegais fazem parte do cotidiano na série).
Os irmãos Shelby, protagonistas e mandantes na gangue, mantém sua própria rede de apostas ilícitas e contrabando de cigarros. Abandonados pelo Estado, sofrem com a pressão de sobreviver em um meio de escassez extrema de recursos e oportunidades, apesar de terem servido ao exército britânico durante a Primeria Guerra Mundial.
O líder dos Peaky Blinders, o inteligente e calculista Thomas Shelby, se vê sem apoio do governo mesmo após ter recebido duas medalhas por bravura durante seu serviço militar. Isso origina uma desilusão do personagem para com o mecanismo estatal, que abandonou sua família ao invés de demonstrar gratidão por seus esforços em guerra. 
Neste contexto, a família canaliza suas habilidades criminosas somadas ao treinamento militar dos homens para a expansão dos negócios e tomada de territórios de outras gangues. Essa era sua única opção? Seria muito raso responder que sim. Se esta fosse realmente a única opção, todos os indivíduos que se encontrassem em um contexto de escassez em ambientes hostis iriam se tornar criminosos, e não é isso o que acontece.
Esta é uma limitação da abordagem da desorganização social, que apesar de bastante esclarecedora, não explica tudo (e nenhuma teoria consegue fazer isso). Entretanto, a visão criminológica ainda pode fornecer interpretações produtivas, tanto sobre o seriado quanto fenômenos criminais reais.
Podemos recorrer às lentes da associação diferencial para complementar os questionamentos sobre os fatores que fazem alguém se tornar criminoso. Esta teoria postula que a criminalidade é um comportamento socialmente aprendido como qualquer outro, bastando que um sujeito possua mais estímulos que o incentivem a cometer crimes do que a agir dentro da lei.
A socialização em um meio onde há pessoas que cometem crimes regularmente poderá servir como ensino tanto de métodos e técnicas para execução de atividades criminosas quanto de racionalizações que os indivíduos utilizam para não sentirem culpa por seus atos. Em alguns casos, pode não ocorrer remorso algum (ou até prazer no lugar de uma emoção negativa).
Tais mecanismos se conectam com a teoria da neutralização, que explica processos pelos quais as pessoas recorrem a pensamentos que anestesiam sentimentos como a culpa ao agirem de forma ilegal. Isso significa que crescer rodeado de criminosos garantirá que alguém se tornará um deles? Não necessariamente. Perceba como fenômenos humanos podem ser explicados utilizando diversas óticas, pois existem múltiplas variáveis permeando qualquer objeto de análise neste campo.
Prosseguindo com a discussão, precisamos determinar o que de fato se entende por gangue, já que este termo é utilizado como sinônimo de organização criminosa, máfia ou quadrilha. Uma gangue (ou grupo delinquente) é geralmente caracterizada pela reunião sistemática de indivíduos jovens que empreendem atividades ilegais (geralmente violentas) e participam de conflitos territoriais com outros grupos, sejam eles delinquentes ou não.
Outro fator importante para a caracterização de uma gangue é o senso de identidade compartilhado pelos integrantes, o que gera uma representação de pertencimento ao conjunto. Tais associações originam um ambiente propício para o aprendizado de técnicas de cometimento de crimes, além do compartilhamento de diretrizes morais diferenciadas que legitimam ou justificam os atos ilegais para os próprios integrantes. Isso implica a existência de um conjunto de normas na gangue que não estão necessariamente de acordo com as regras do resto da comunidade, portanto há um simbolismo moral próprio. 
O comportamento das gangues está intimamente relacionado com a noção de territorialidade, pois a aquisição de um maior terreno implica um maior alcance dos negócios. Desta forma, quanto maior a área dominada, mais lucros serão obtidos com as transações ilegais. O problema se torna mais complexo quando se leva em conta que existem diversos grupos lutando por territórios comuns, em um ciclo de conflitos violentos. Por sua vez, estes mesmos conflitos podem reforçar os laços de uma gangue.
E como isso acontece? Uma vitória sobre um grupo rival servirá de matéria prima para construções de narrativas simbólicas dos envolvidos sobre como os mesmos superaram uma adversidade juntos. Assim o sentimento de coesão entre os membros pode ser intensificado, fortalecendo as relações dentro da gangue. Na série, a vitória sobre Billy Kimber ilustra bem esse fenômeno. Assassinar o líder de uma gangue rival após um embate solidificou a interação dos membros da família Shelby e inicou uma narrativa lendária sobre os Peaky Blinders.
Além de possuir atributos de um grupo delinquente, os Shelby apresentam características do conceito de organização criminosa também. Segundo o cientista político Guaracy Mingardi, este tipo de arranjo é definido por um sistema de relações que possui o objetivo de fornecer bens ou serviços ilegais utilizando um vínculo com agentes do estado para executar suas transações.
Os personagens se referem com frequência a “policiais na folha de pagamento” e eventualmente mandam os agentes realizarem pequenos serviços ou fazerem vista grossa, além de cederem informações sobre as investigações. Uma organização criminosa também tem poder de utilizar violência quando achar necessário e emprega ameaças para garantir sua influência sobre outras pessoas. Em comparação com uma gangue, a organização é melhor estruturada e possui planejamento financeiro, com previsão de lucros e divisão de tarefas específicas entre os integrantes. 
Por exemplo, nos Peaky Blinders os irmãos gerenciam atividades diferentes: Arthur emprega suas inclinações violentas para executar inimigos e intimidar pessoas para forçá-las a contribuir com a atuação do grupo; John gerencia as apostas ilegais, comandando uma equipe de funcionários que coletam e distribuem dinheiro e os bilhetes de apostas; e Thomas (Tommy, como é apelidado) age de forma mais difusa, administrando a atuação da gangue como um todo e planejando estratégias que vão desde investimentos arriscados ao assassinato de pessoas que podem prejudicar sua família e negócios.
Organizações criminosas podem se formar por diversos processos e nem sempre vão se encaixar perfeitamente nos modelos estruturais das teorias. A gênese deste tipo de agregação se dá por múltiplos fatores, impossibilitando a eleição de explicações generalistas para o fenômeno. A associação pode ocorrer por meio do compartilhamento de aspectos étnicos e culturais pelos quais os indivíduos acabam desenvolvendo uma cooperação para aumentar sua aquisição de recursos em uma comunidade hostil.
A herança cigana dos Peaky Blinders é um exemplo disso, pois é uma identidade compartilhada pela família apesar de ser motivo de discriminação por outros membros da comunidade e até de agentes da lei. É importante ressaltar que, além dos vínculos entre os membros, também existe um voto de silêncio dentro das organizações. Em alguns casos, infringir essa regra pode causar a morte como punição. A palavra italiana Omertà, que significa “conspiração”, ilustra o princípio de não compartilhar informações sobre o grupo com pessoas que não pertencem ao mesmo.
Ainda podemos analisar a série sob a perspectiva do “ethos guerreiro”, termo utilizado para descrever uma série de interiorizações de atitudes agressivas no indivíduo, influenciadas por sua convivência com um grupo violento. Veja como isso se relaciona com a teoria da associação diferencial, que foca em compreender este e outros processos de aprendizagem social.
Para exemplificar, podemos observar o personagem Finn Shelby, irmão mais novo e ainda criança no início da série. Finn cresce em meio a uma família que gerencia uma série de atividades ilegais e demonstra comportamentos agressivos que justificam para si mesmos como formas de proteger a família, legitimando as práticas violentas. Além disso, o jovem Shelby vê os familiares carregando e utilizando armas de fogo, bebendo bebidas alcoólicas indiscriminadamente e fumando cigarros de forma constante. 
Utilizando a ótica do Ethos guerreiro, Finn estaria absorvendo e interiorizando as práticas e racionalizações utilizadas por seus parentes, aprendendo a reagir de forma violenta ao se sentir ameaçado ou ofendido, além de fazer justiça com as próprias mãos por não reconhecer o Estado como uma forma legítima de resolução de conflitos e proteção de seus direitos. Desta forma, fica evidenciada mais uma variável que pode influenciar na probabilidade de uma pessoa adentrar em comportamentos criminosos agressivos, já que os mesmos são permitidos por seu grupo e até incentivados em algumas ocasiões. 
Essa interiorização de valores e símbolos acarreta na construção de uma hipermasculinidade, fator central na ideia de um ethos guerreiro. Trata-se de uma exacerbação de características que representam o conceito de macho, um homem forte que não tem medo de utilizar a força física para intimidar ou vencer seus inimigos, que podem ser desde pessoas que lhe agrediram fisicamente ou que apenas ofenderam sua honra.
Novamente, nenhuma das teorias aqui expostas garante que as pessoas se tornarão criminosas se forem colocadas nestas circunstâncias, mas elas nos ajudam a compreender a estrutura e a dinâmica da criminalidade para que possamos pensar em formas de combatê-la.
O seriado Peaky Blinders demonstrou ser uma forma lúdica e bastante didática de explorar os mecanismos subjacentes que permitem a transformação de uma gangue em uma complexa organização criminosa, além de ilustrar como um aglomerado deste tipo pode influenciar drasticamente a dinâmica da comunidade na qual está inserido.

REFERÊNCIAS
Crime, Polícia e Justiça no Brasil. Renato Sérgio de Lima, José Luiz Ratton, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. Editora Contexto.
Criminology: A Sociological Introduction. Eamonn Carrabine, Pam Cox, Maggy Lee, Ken Plummer e Nigel South. Second Edition. Editora Routledge

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