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terça-feira, 26 de novembro de 2019

A voz das muçulmanas vítimas de violência doméstica precisa ser ouvida

Mulheres muçulmanas muitas vezes são silenciadas por suas próprias comunidades ou então enfrentam estereótipos islamofóbicos de agências externas quando buscam ajuda.
By Rowaida Abdelaziz, HuffPost US
24/11/2019
SÃO FRANCISCO, EUA – Aconteceu três dias depois da formatura do ensino médio. Nour Naas, na época com 18 anos, estava na frente de casa quando viu seu pai disparar sete tiros no peito de sua mãe.

Naas, hoje com 24 anos, lembra daquele dia respirando fundo, com uma expressão estoica, uma resignação diante do sofrimento que ainda reverbera no presente. Ela parece ter medo que o chão vá desaparecer sob seus pés se ela demonstrar emoção. Naas se endireita na cadeira, atenta à sua postura, e passa as mãos no vestido jeans. Depois, arruma o hijab cor de café que enquadra seus grandes olhos castanhos.
“Sei que ele queria matá-la”, diz. Duas semanas antes do feminicídio, ela tinha sido chamada por seu pai para uma conversa, perguntando o que ela faria se seus pais morressem. Na época, Naas não entendeu a pergunta.
Mas ali, na cena do crime, tudo ficou claro. Ela gritou, incapaz de desviar os olhos de sua mãe, caída numa poça de seu próprio sangue.
Sem conseguir olhar para trás, começou a correr.
Sei que ele queria matá-la.
Nour Naas, 24
Buscar ajuda é um desafio para as vítimas de violência doméstica, a despeito de etnia ou religião. Medo e vergonha são silenciadores poderosos. Mas mulheres como a mãe de Naas enfrentam obstáculos distintos e árduos. O HuffPost conversou com mais de uma dezena de sobreviventes muçulmanas e também com pessoas que trabalham em organizações que prestam apoio à comunidade muçulmana dos Estados Unidos para comprovar esse dado.
Várias vítimas disseram não confiar nos governos estaduais e federais dos Estados Unidos, porque já foram vítimas de discriminação no passado. A apuração da reportagem mostra que, quando procuram ajuda, muitas vezes elas têm de lidar com estereótipos islamofóbicos – muitas vezes vindo das próprias pessoas cuja responsabilidade é garantir sua segurança. Mulheres que procuraram imãs [autoridade religiosa do islamismo] dizem que os líderes religiosos não têm preparo para lidar com vítimas de violência doméstica. Quase todas as mulheres entrevistadas dizem sofrer com o estigma cultural sob o divórcio e são incentivadas a continuar em um casamento violento.
A violência doméstica não discrimina por raça, idade, etnia ou religião. Cerca de uma entre quatro mulheres norte-americanas foi vítima de abuso doméstico grave, segundo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças. 
Há poucos dados sobre as ocorrências de violência doméstica na comunidade muçulmana, mas um levantamento de 2011 aponta que mais de dois terços das muçulmanas conhecem alguma outra mulher de sua religião que foi vítima de agressões físicas. Mais de 53% relataram ter sofrido algum tipo de abuso. O levantamento, realizado pelo Peaceful Families Project e pelo Projeto Sakinah, duas organizações ligadas à comunidade islâmica, é a maior base de dados sobre o tema, ressaltando a necessidade de mais pesquisas.
Todas as mulheres entrevistadas pelo HuffPost, muitas das quais pediram anonimato, descreveram dificuldade para obter ajuda. Algumas são imigrantes e falaram da escolha difícil de ter de continuar morando com o agressor porque ele era o responsável por seu visto. Em outros casos, elas eram forçadas a ficar em casa porque não falavam inglês bem o suficiente para procurar abrigos.
Muitas são mães solteiras, e seus filhos também sofreram o trauma de testemunhar ou de serem eles mesmos vítimas de abuso. Quase todas as mulheres concordam que não se trata de uma questão religiosa, mas descrevem um sentimento profundo de vergonha depois de procurar ajuda. Elas acreditam que os muçulmanos e suas lideranças religiosas têm de se esforçar mais para combater o problema.

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O pai de Nour Naas matou a mãe dela em 2013. Ele foi morto pela polícia logo depois de cometer o crime.

Revivendo um pesadelo

Quando a polícia encontrou Naas, ela estava perdida, ainda correndo. Depois de prestar depoimento, ela foi para a casa de um amigo da família – a mesma pessoa que seu pai disse que ela deveria procurar caso os pais morressem. O pai de Naas foi morto pela polícia logo depois de cometer o feminicídio.
Naas e seus três irmãos nunca discutiram o que aconteceu com sua mãe. Cada um processa o luto de forma privada e à sua maneira, ela conta.
Em uma tarde ensolarada de outubro, sentada na sala do Centro Cultural Comunitário Árabe de San Francisco, nos Estados Unidos, Naas lembrou da primeira vez que se deu conta do quão violento seu pai era. Foi em uma noite de inverno de 2009. Ela o viu agarrando e chacoalhando a mãe, que depois ficou com hematomas. Quando a mãe de Naas se recusou a cumprir uma ordem de se sentar, ele atirou uma cadeira contra ela. Naas chamou os irmãos aos gritos. Os quatro filhos se colocaram entre o pai e a mãe, acabando com a briga.
“Depois disso, nunca mais vi meu pai da mesma maneira”, diz Naas. Naquela noite, sua mãe prestou queixa na polícia. O pai de Naas descobriu e ameaçou matá-la caso ela procurasse a polícia de novo. Não foi a violência física que aterrorizou Naas, mas sim as ameaças e a imprevisibilidade do temperamento de seu pai.
O recente agravamento da islamofobia – crimes de ódio, políticas intolerantes e incidentes diários de assédio contra muçulmanos nos Estados Unidos e na Europa – só aumenta o desafio de enfrentar a violência doméstica na comunidade muçulmana.
Os homens muçulmanos são frequentemente descritos na mídia como um grupo monolítico que oprime as mulheres, e o medo de julgamentos por não-muçulmanos torna a questão da violência doméstica um assunto muito difícil de tratar, diz Juliane Hammer, professora associada da Universidade da Carolina do Norte e autora de “Peaceful Families: American Muslim Efforts against Domestic Violence” (“Famílias em paz: os esforços dos muçulmanos americanos contra a violência doméstica”, em tradução livre).
“A hostilidade contra os muçulmanos cria uma atmosfera na qual as mulheres muçulmanas – além do abuso que reconhecem e querem combater – também percebem que denunciar ou buscar ajuda vai refletir mal junto aos homens de sua comunidade, e também junto à comunidade como um todo”, diz Hammer.
A hostilidade contra os muçulmanos cria uma atmosfera na qual as mulheres muçulmanas ... percebem que denunciar ou buscar ajuda vai refletir mal junto aos homens de sua comunidade, e também junto à comunidade como um todo.
Juliane Hammer, professora associada da Universidade da Carolina do Norte
Desde a eleição de Donald Trump, Hammer afirma que políticas como a proibição da entrada de muçulmanos de certos países nos Estados Unidos e a repressão contra os imigrantes complicaram a vida de quem tem de navegar o sistema judicial do país. Muitas vezes, as mulheres deixam de procurar serviços de assistência social. “As muçulmanas que sobrevivem à violência doméstica são perpetuamente revitimizadas por essas políticas”, diz Hammer.
Chamar a polícia também pode ser visto como motivo de vergonha para a família. No Islã, a coesão da vida familiar é enfatizada tanto na religião como na cultura. O divórcio não é bem visto em comunidades religiosamente conservadoras. Muitas mulheres muçulmanas ainda têm dificuldade em “lavar sua roupa suja” e procurar a ajuda de entidades especializadas. 
As muçulmanas acham que esse tipo de atitude mais atrapalha que ajuda, diz Mouna Benmoussa, chefe do Arab Woman Services, programa ligado a um abrigo para mulheres asiáticas vítimas de violência doméstica nos Estados Unidos. Elas também têm medo que seus maridos sejam deportados ou acabem na cadeia, diz. “Mesmo com os abusos e maus-tratos, elas querem que os maridos continuem nos Estados Unidos.”

A perpetuação do ódio

Naas passou anos tentando entender por que seu pai assassinou sua mãe. Ela pensou em fazer trabalho voluntário em agências que lidam com violência doméstica para entender melhor o ciclo do abuso e por que é tão difícil acabar com a violência. O que ela não esperava era deparar-se com islamofobia por parte das pessoas que deveriam ser parte da solução.
Em 2017, quando trabalhava em uma agência de Oakland, Naas perguntou a uma colega se a equipe havia tentado contatar mesquitas da região. Ela acreditava ser importante se aproximar da comunidade muçulmana local. “As muçulmanas têm permissão para falar?”, disse a mulher, desprezando a sugestão. Em outro incidente, a mesma colega comentou que uma muçulmana que estava deprimida e contemplando o suicídio a lembrava dos “terroristas suicidas do ISIS”.
Abrigos para mulheres são um sistema de apoio essencial, mas esses espaços seguros podem ser mais uma fonte de abuso para as muçulmanas, segundo Naas. Especialistas entrevistados pelo HuffPost afirmam que muitas delas ouvem que o abuso doméstico deveria ser “esperado” por causa da sua religião.
Em Baltimore, o abrigo Muslimat Al-Nissa atende exclusivamente mulheres muçulmanas. A fundadora do abrigo, Asmaa Hanif, 65, disse ao HuffPost que é imperativo criar um espaço para acomodar as mulheres muçulmanas de todas as maneiras, incluindo alimentação halal e lugares onde elas possam rezar.

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Você conhece uma pessoa da sua comunidade religiosa que tenha sido vítima de violência por parte de algum integrante de sua família nos últimos 12 meses?Estamos falando de violência doméstica. (% dos que responderam sim). Base: total de respostas, 2017 Segundo o Institute for Social Policy and Understanding, os muçulmanos têm a mesma propensão de outros grupos religiosos ou não religiosos a afirmar que uma pessoa de sua comunidade foi vítima de violência doméstica.

“Quando você coloca muçulmanas num abrigo com outras mulheres, até mesmo em abrigos que dizem acolher muçulmanas, existe o risco de que elas sejam maltratadas. Você não tem como controlar a mentalidade ou as ações das pessoas que estão lá”, diz Hanif.
Hanif, que mora no abrigo e o administra há 40 anos, diz que suas clientes contam casos em que o cozinheiro colocou carne de porco e suas refeições (muitas muçulmanas não comem carne de porco) e também de assédio contra as muçulmanas que querem rezar. Esse tipo de discriminação só aumentou desde a eleição de Trump, diz Hanif, levando mais mulheres para seu abrigo.
Naas acreditava ser importante estar em contato com integrantes da comunidade muçulmana local. ‘As muçulmanas têm permissão para falar?’, respondeu uma colega.
Existem milhares de agências que lidam com violência doméstica – abrigos, serviços de aconselhamento e grupos ativistas – que oferecem recursos para os estimados 10 milhões de vítimas anuais de violência doméstica nos Estados Unidos. As centrais telefônicas recebem em média mais de 20.000 ligações por dia, segundo a Coalizão Nacional Contra a Violência Doméstica.
Mas, com um número crescente de vítimas, as agências espalhadas pelo país operam com menos pessoal e menos recursos financeiros. Segundo a Rede Nacional para Acabar com a Violência Doméstica (NNEDV, na sigla em inglês), quase 80% dos estados relataram cortes ou reduções nos fundos destinados a esses programas, apesar do aumento da demanda.
“Gostaria que todos os ativistas da linha de frente e todos os 2 000 programas locais tivessem a exigência de passar por treinamentos sobre viés implícito, inclusão e competências culturais. Mas, infelizmente, nem todo mundo tem acesso a esses treinamentos”, diz ao HuffPost Cindy Southworth, vice-presidente executiva do NNEDV. “Queremos que todos os programas locais acolham calorosamente as mulheres muçulmanas e todas as sobreviventes.”

Entendendo o papel da religião 

Não se sabe se a mãe de Naas chegou a buscar ajuda ou um abrigo. Mas ela procurou seu imã. 
Como os padres, os imãs aconselham fieis sobre vários assuntos que vão além do âmbito religioso. Não é incomum que eles falem sobre questões financeiras e familiares, incluindo abuso doméstico. Na realidade, em comparação com outras religiões, os muçulmanos têm maior propensão a denunciar abusos para seus líderes religiosos.
Mas nem todos os imãs – cuja educação em geral se baseia nas escrituras islâmicas e sua interpretação – são treinados para lidar com vítimas de violência doméstica.
“Quando um imã é contratado, a descrição do emprego não diz que ele dará aconselhamento para casos graves ou que terá de lidar com violência doméstica”, diz Salma Abugideri, diretora de treinamento da Peaceful Families Project, uma organização nacional de violência doméstica que se concentra na comunidade muçulmana americana. “Eles não têm preparo e não sabem que precisariam estar preparados.”
A organização de Abugideri, fundada em 2000, treina líderes religiosos sobre a dinâmica do abuso doméstico e realiza oficinas em todo o país. Nos últimos anos, a demanda pelo treinamento da PFP tem aumentado, afirma ela.
“Para mim, isso reflete a consciência de que eles não são treinados adequadamente, de que não estão realmente equipados para lidar com a violência doméstica ou mesmo com o aconselhamento”, disse Abugideri.

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Muçulmanos têm maior propensão a denunciar violência doméstica para líderes religiosos. Esta pessoa denunciou a violência para a polícia? Esta pessoa denunciou a violência para líder religioso ou comunitário em sua comunidade religiosa? (% dos que responderam sim). Base: Total de respostas de pessoas que conhecem alguém em suas comunidades religiosas que foi vítima de violência doméstica, 2017.

Khalid Latif, diretor executivo e capelão do Centro Islâmico da Universidade de Nova York, disse que centenas de mulheres, de adolescentes a mulheres na faixa dos 70 anos, relataram casos de abusos a ele durante seus 14 anos na função.
Latif diz que o problema não é o Islã, já que a religião proíbe a violência e os maus tratos contra as mulheres, mas sim a necessidade de treinamento para os líderes religiosos e a formação de parcerias com agências de violência doméstica administradas por muçulmanos. 
“O currículo e a pedagogia tradicionais, na maioria das instituições muçulmanas de ensino religioso, envolvem fundamentalmente a memorização de certos livros e textos, e não há nada de errado nisso”, afirma Latif. Mas o imã de 37 anos acrescenta que a prestação de serviços sociais e o trabalho de campo também estão entre as obrigações dos líderes religiosos. 
Eles hesitam em abordar a questão por medo de aumentar a islamofobia, diz Mona Kafeel, da Texas Muslim Woman’s Foundation, em Dallas. Sua organização atendeu a mais de 3 000 sobreviventes de violência doméstica nos últimos cinco anos e recebe mais de 1 000 ligações diariamente em sua central de atendimento telefônico, que funciona 24 horas. Kafeel afirma que muitos líderes muçulmanos também sentem vergonha em reconhecer a violência doméstica em suas comunidades e não querem lavar roupa suja em público.
Alguns sobreviventes disseram ao HuffPost que seus agressores escolheram a dedo texto islâmicos na tentativa de justificar suas ações e colocar a culpa nas vítimas. Essa é uma tática comum para os abusadores de qualquer religião e complica ainda mais a vida das mulheres que querem sair de casa, diz Latif.
“Assim que você começa a usar o Alcorão para justificar coisas do tipo seu direito de existir em tranquilidade ou sem opressão, isso é um problema”, acrescenta ele. Apesar dos desafios, porém, muitas sobreviventes disseram ao HuffPost que sua fé também lhes deu a força necessária para procurar ajuda.

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Sobreviventes de violência doméstica que conversaram com o HuffPost enfrentam vários desafios: encontrar um lugar para morar, navegar o sistema judicial americano e conseguir sair de casa sem punir seus agressores.

Combatendo o estigma

A mãe de Naas morreu há cinco anos. Ela continua se manifestando sobre violência doméstica, mas muitas vezes se frustra porque sua comunidade local se refere ao crime como um feminicídio, não como o que realmente aconteceu – um caso de violência doméstica que se arrastou por anos e terminou com um assassinato premeditado. Alguns sugerem que Naas pare de escrever sobre violência doméstica e “siga em frente”.
Mas Naas se recusa. Hoje, além de estudar sociologia na Universidade Estadual da Califórnia, ela também trabalha no Asian Women’s Shelter, um abrigo que atende imigrantes e refugiadas que sobreviveram à violência doméstica. Naas trabalha lá há um ano.
Numa manhã de outubro, ela se juntou a um grupo de muçulmanas árabes para um café num centro comunitário local. Todas eram sobreviventes, e muitas estavam se conhecendo naquela ocasião.
Todas falaram anonimamente, destacando o medo intenso e o estigma que ainda enfrentavam. Uma delas falou sobre a dificuldade da língua e da humilhação que sentiu quando teve de depor diante de um tribunal americano Outra comentou a necessidade de reconhecer também o abuso emocional.
“Preferiria que ele me batesse”, disse uma mulher, em voz baixa. As outras concordaram, meneando a cabeça. As cicatrizes emocionais demoram para cicatrizar.
Os obstáculos enfrentados pelas mulheres eram os mesmos: obter moradia em uma das cidades mais caras do país, navegar o sistema judicial americano e conseguir sair de casa – mas sem punir seus agressores.
Às vezes, disse Naas, ela se sente grata pelo fato de seu pai ter sido morto pela polícia, pois isso significa que ela não tem de ter nenhuma relação com ele. Mas a morte não representou o fim da história. Então ela passou a escrever, na esperança de encontrar sentido por meio do trabalho. Naas diz que pensa na mãe todos os dias.
“No meu coração, não tenho dúvidas de que ela estaria orgulhosa de mim”, diz ela. “Só quero honrá-la.”

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