“A parte mais difícil de aceitar a mutilação genital feminina pra mim é que isso não evitou a coisa que meus pais acharam que evitaria.”
Mishaal começou a se masturbar com cerca de 7 anos. Sua mãe a pegou fazendo isso algumas vezes e, logo depois, decidiu mandar cortar o clítoris de Mishaal.
“No final da adolescência, quando falei com a minha irmã [que também passou por mutilação genital] e minha mãe sobre por que ela fez o procedimento, a resposta foi: 'Isso é feito para reduzir a libido das mulheres e evitar que elas façam sexo'”, lembra Mishaal. Na comunidade delas no Paquistão, ela acrescentou, “a atitude era: 'Sexo é para fazer bebês. Por isso não pode ser prazeroso' A crença da minha mãe era: 'Você tem que fazer sexo para dar prazer ao homem'. Eu não tinha direito ao prazer sexual.”
Depois de anos de ativismo e educação, muitos americanos agora estão familiarizados com mutilação genital feminina (MGF), uma prática que envolve desde “fender” o clítoris de uma menina ou mulher – um termo vago que abrange tamanhos e profundidades variadas de incisões com diversos efeitos – até remover parte dele ou o clítoris inteiro, ou todo os lábios e costurar a vulva. A mídia geralmente foca em quão espalhada é a tradição da MGF, mesmo no Ocidente (MGF geralmente é considerada uma questão africana, e asiática em menor grau). Relatórios detalham como muitas (mas não todas) as meninas e mulheres passam pela MGF quando muito jovens, contra sua vontade, sob dificuldades sociais extremas, ou sem o conhecimento real do que está acontecendo com elas. Ativistas pintaram com detalhes excruciantes todos os riscos associados com a prática, de dor de longo prazo, complicações na gravidez e trauma psicológico até, em muitos casos, morte durante ou depois do procedimento.
Depois de anos de ativismo e educação, muitos americanos agora estão familiarizados com mutilação genital feminina (MGF), uma prática que envolve desde “fender” o clítoris de uma menina ou mulher – um termo vago que abrange tamanhos e profundidades variadas de incisões com diversos efeitos – até remover parte dele ou o clítoris inteiro, ou todo os lábios e costurar a vulva. A mídia geralmente foca em quão espalhada é a tradição da MGF, mesmo no Ocidente (MGF geralmente é considerada uma questão africana, e asiática em menor grau). Relatórios detalham como muitas (mas não todas) as meninas e mulheres passam pela MGF quando muito jovens, contra sua vontade, sob dificuldades sociais extremas, ou sem o conhecimento real do que está acontecendo com elas. Ativistas pintaram com detalhes excruciantes todos os riscos associados com a prática, de dor de longo prazo, complicações na gravidez e trauma psicológico até, em muitos casos, morte durante ou depois do procedimento.
Eles também apontaram como muitas culturas, como a de Mishaal, usam explícita ou implicitamente a MGF para controlar ou eliminar a agência, desejo e prazer sexual das mulheres – ou aumentar esses sentimentos para os homens.
Mas de todas as histórias de sobreviventes sobre a experiência de ter o clitóris cortado e os efeitos disso na vida, pouca coisa foi escrita na mídia explorando como as pessoas que passaram por MGF experimentam o sexo e navegam pela intimidade. O que é compreensível; sexo é um assunto tabu em muitas culturas, especialmente naquelas onde a MGF é tradição. Compartilhar os detalhes íntimos sobre a vida pós-MGF pode ser difícil, constrangedor ou até provocar isolamento social. Mas essas histórias podem ser ferramentas poderosas para ajudar quem é de fora a entender, num sentido visceral, como a MGF pode afetar a vida sexual das pessoas, e fazê-las se sentir menos isoladas na experiência.
Claro, a experiência do sexo e intimidade depois da MGF não é a mesma nunca. O tipo de dano causado aos genitais de uma mulher depende de tradições regionais e as condições sob as quais a MGF foi feita. E nem todo mundo reage a MGF do mesmo jeito. Vários estudos mostram que mulheres que passaram por MGF muitas vezes experimentam sensações e desejo sexual reduzidos, dor durante o sexo, incapacidade de se lubrificar ou ter um orgasmo, e ansiedade ou outros sintomas mentais de trauma, entre outras questões. Mas algumas mulheres dizem que ainda conseguem fazer sexo prazeroso com poucas ou nenhuma dificuldade, mesmo tendo passado pelas formas mais extremas de MGF.
Num esforço para trazer mais histórias sobre as experiências de sexo e intimidade depois da MGF ao público, a VICE falou recentemente com Mishaal e seu marido Ibrahim, que hoje vivem nos EUA. Os dois são parte do secto Dawoodi Bohra do ismaelismo xiita, uma minoria de várias centenas de milhares de pessoas, que vivem principalmente na Índia, Paquistão, Iêmen e na costa da África Oriental, e que regularmente cortam clitórias das meninas quando elas têm cerca de 7 anos. (Em 2017, autoridades prenderam um médico Bohra em Detroit que realizava MGF, o primeiro caso de um indivíduo realizando o procedimento nos EUA.) Embora a comunidade Bohra esteja discutindo a MGF mais abertamente nos últimos anos, o casal não quis compartilhar seus nomes reais por medo de repercussões sociais ou estigmatização geral. A VICE deu a eles os pseudônimos Mishaal e Ibrahim para que eles pudessem discutir sinceramente esse aspecto de suas vidas.
Mishaal: Não fiz sexo antes do casamento. Mas tive intimidade com várias pessoas. Eu gostava das preliminares, principalmente pela excitação de algo proibido quando eu era criança. Mas nunca gozei com ninguém além de mim. Então eu sabia que tinha algo errado. Mas não entendi que era ligado ao corte até mais tarde.
Quando eu era jovem, nunca estive num relacionamento sério, então os encontros sexuais foram poucos. Mas depois que me casei, a penetração foi dolorosa por muito, muito tempo. Isso desencadeou uma reação traumática que eu não esperava. Eu quase tinha medo do sexo. E isso também gerava sentimento de “Meu deus, isso é péssimo pro nosso relacionamento”. Ou “Não me sinto inteiramente mulher”. Eu estava com medo de perder nosso relacionamento.
Ibrahim: Nos casamos bem rápido. Nos conhecemos através de um amigo em comum e namoramos por algumas semanas [enquanto Mishaal estava nos EUA de férias] antes de ficarmos noivos. Nos casamos oito meses depois, mas na maior parte do tempo estávamos distantes fisicamente, com ela no Paquistão e eu visitando periodicamente. Tivemos encontros sexuais, mas não o coito. Antes de casarmos, ela nunca disse nada; eu não percebi que ela tinha passado por um procedimento.
Falamos sobre isso mais tarde, depois de tentar fazer sexo e descobrir que era difícil pra ela. Fizemos sexo na noite de núpcias, e foi muito doloroso pra ela, o que foi uma experiência perturbadora pra mim também. Eu já tinha feito sexo. Namorei quatro mulheres antes de me casar com Mishaal, e nunca tive uma experiência onde o sexo era tão doloroso para a parceira. Foi difícil processar o que tinha acontecido. Eu entendia que ela era virgem e que a primeira vez sempre é difícil. Mas minha primeira namorada também era virgem, e ela não pareceu ter qualquer dificuldade.
Eu tinha ouvido falar que MGF era praticada na África. Mas eu não sabia que acontecia dentro da nossa comunidade, e acho que a maioria dos homens também não sabe. Como isso afetava a intimidade para as mulheres, eu não tinha ideia. Eu achava que era uma prática brutal e muito injusta, mas nunca realmente pensei além disso.
Mishaal: Foi quando percebi o efeito da MGF na minha habilidade de ter prazer no sexo de qualquer experiência. Entendo que o quanto você gosta de sexo depende de quanto você está excitada. Eu sabia que a MGF era parte de não conseguir ficar suficientemente excitada para aproveitar o sexo. Mas eu esperava que isso fosse melhorar. Você só é virgem uma vez.
Ibrahim: Não tivemos uma conversa sobre isso. Aconteceu ao longo de várias experiências.
Mishaal: Nossa dificuldade de falar sobre isso nos fez perceber como era ruim a mensagem em que estávamos mergulhados – dificuldades para falar de sexo, ver o sexo como algo quase sujo. Esse subtexto foi incorporado em nós desde a infância.
Ibrahim: Tentamos fazer sexo com mais frequência. Tentando jeitos diferentes, diferentes posições e atividades para facilitar as coisas. Acho que por um bom tempo, parte do problema era que Mishaal ficava muito tensa quando um encontro sexual começava, e isso tirava qualquer prazer que ela podia ter. Honestamente, só depois que tivemos nosso primeiro filho ela começou a ter, não necessariamente conforto – mas ela não recuava quando eu iniciava o sexo.
Mishaal: É difícil saber [quanto da dificuldade no sexo era resultado das questões físicas causadas pela MGF e quanto disso era a expectativa psicológica da dor]. Essa sempre foi uma dúvida na minha cabeça. Acho que pra mim é uma combinação das duas coisas.
Fisicamente, se consigo ter um orgasmo através de masturbação, então isso também deveria acontecer através do sexo com um parceiro. Mas isso nunca aconteceu. A presença de outra pessoa simplesmente me afeta agora. Mas o sexo evoluiu de ser totalmente doloroso para ser tolerável [depois de dar à luz pela primeira vez]. Isso diminuiu muito o estresse cercando o sexo e o tornou muito melhor.
Ibrahim: Só descobri bem mais tarde no nosso casamento que Mishaal estava se masturbando. Era novidade pra mim saber que ela tinha experimentado orgasmo antes. Mas isso não influenciou realmente [como fazemos sexo]. Não aprendi ainda o que permite a ela atingir o orgasmo através da masturbação.
Mishaal: Ainda assim, tem sido uma evolução: “OK, simplesmente aceito a derrota como muitas mulheres da minha cultura e que nunca vou sentir prazer com isso? Ou tento encontrar um jeito de contornar o problema?”. E honestamente, acho que ainda não consegui. Ainda não fiz o suficiente. Sei que coisas como terapia sexual poderiam me ajudar. Ou poderíamos experimentar com brinquedos ou algo assim. Outras coisas podem ajudar. Mas é muito difícil pra mim mesmo ficar excitada [para tentar essas coisas].
Ibrahim: Infelizmente, não estamos no pico da nossa energia quando vamos pra cama [trabalhamos em tempo integral e cuidamos de crianças pequenas]. Ainda fazemos sexo, mas não com tanta frequência.
Mishaal: Mas tem muitas coisas que nos unem além do sexo. Somos muito físicos em termos de abraços e beijos, então não é como se não tivéssemos contato físico.
Ibrahim: Podemos não ter penetração, mas sexo oral acontece. Tem jeitos de nos ajudarmos.
Mishaal: Na minha cabeça, existe uma proximidade sexual que infelizmente ainda não tive – com Ibrahim nem ninguém. Mas há outro nível de proximidade que existe no nosso relacionamento.
Mas mesmo que seja uma coisa que está mudando, ainda tenho muita culpa. Acho que ele poderia ter um relacionamento ativo com alguém que é iniciada, ou desejasse sexo. Me sinto muito mal por não ser uma boa parceira nesse aspecto. Sempre há uma sombra na minha vida vindo disso.
Ibrahim: Mas acho que ainda mostro minha afeição por Mishaal.
Mishaal: Você mostra. A culpa que sinto é autoinfligida.
Ibrahim: Em certo nível, até eu tenho um trauma pelas nossas experiências. O sexo era tão doloroso – por que eu ia querer que você sentisse isso?
Mishaal: Ele tem se desabituado com o sexo. Tento abordar isso, mas está cada vez mais difícil. Com os anos, a libido se vai. Eu estava dizendo pro Ibrahim outro dia que mesmo não tirando prazer do sexo, às vezes ainda quero me masturbar. Mas não quero faz muito tempo.
I brahim: Mas recentemente, conhecer pessoas que passaram pela experiência – ou mesmo conversar com sua mãe e irmã abertamente sobre isso e quão doloroso é – tem ajudado. Se isso tivesse acontecido antes, acho que as coisas teriam sido diferentes.
Mishaal: Muito disso é resultado de não ter tido essas conversas mais cedo, e carregar a vergonha e a culpa por tanto tempo que isso moldou como vejo o sexo.
Ibrahim: Isso nunca vai acontecer com a nossa filha.
Mishaal: A parte mais difícil de aceitar a MGF pra mim é que isso não evitou a coisa que meus pais acharam que evitaria. Tive relacionamentos com vários homens antes de me casar, e minha decisão de não fazer sexo com eles não teve nada a ver com ter sido cortada, mas com como fui criada, no que eu acreditava. Mas no casamento – que deve ser um relacionamento sagrado – isso criou uma mácula pra toda a vida.
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