Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Regras de Bangkok e encarceramento feminino

Canal Ciências Criminais
Por Fabio Silva de Oliveira
28 de abril de 2017
Na grande discussão que permeia a problemática da política de criminal e encarceramento em massa, um capítulo especial merece atenção: a condição das mulheres presas. Para tanto, consideremos alguns breves apontamentos sobre as Regras das Nações Unidas Para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade Para Mulheres Infratoras [Regras de Bangkok].

Preliminarmente, é preciso destacar que as Regras de Bangkok vêm a dar mais corpo a uma série de resoluções editadas pelos diferentes órgãos das Nações Unidas ao longo de mais de 30 anos sobre justiça criminal e prevenção de crimes, como as Regras Mínimas para Tratamento de Reclusos [Regras de Mandela], Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Submetidas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão, Regras Mínimas das Nações Unidas Sobre Medidas Não Privativas de Liberdade [Regras de Tóquio], Princípios Básicos Sobre a Utilização de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal etc.
O princípio básico das Regras de Bangkok é a necessidade de considerar as distintas necessidades das mulheres presas. Com efeito, são estabelecidas regras de ingresso, registro, alocação, higiene pessoal, cuidados à saúde, atendimento médico específico, cuidados com a saúde mental, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, revistas, instrumentos de contenções, capacitação adequada de funcionários, priorização do contato com o mundo exterior, individualização da pena, flexibilização do regime prisional, foco nas relações sociais e assistência posterior ao encarceramento, cuidados especiais com gestantes e lactantes, estrangeiras, minorias e povos indígenas e deficientes.
As mulheres presas devem ser alocadas em prisões próximas ao seu meio familiar, receber auxílio para contatar parentes, acesso à assistência jurídica [antes, durante e depois o enclausuro], permissão de tomar as providências necessárias em relação aos filhos, incluindo a possibilidade de suspender por um período razoável a medida privativa de liberdade, levando em consideração o melhor interesse da criança. As acomodações devem oferecer instalações e materiais exigidos para satisfazer as necessidades de higiene específica das mulheres etc.
Ao ingressar no estabelecimento deve ser oferecido exame médico de ingresso, com uma avaliação ampla para determinar a necessidade de cuidados básicos, bem como a presença de doenças sexualmente transmissíveis, cuidados com saúde mental, histórico de saúde reprodutiva, existência de dependência de drogas, abuso sexual ou outras formas de violência que possa ter sofrido anteriormente ao ingresso.
No caso de constatado abuso sexual ou outras formas de violência, deverá a instituição informar a mulher presa de seu direito de recorrer às autoridades judiciais, devendo ser cientificada igualmente de todas as etapas e procedimentos envolvidos. Mesmo não havendo interesse na ação judicial, deverá a instituição empenhar-se em garantir que ela tenha acesso imediato a aconselhamento ou apoio psicológico especializado.
Deverá ser incentivado e facilitado por todos os meios razoáveis o contato das mulheres com seus familiares, incluindo seus filhos/as, quem detêm a guarda e seus representantes legais.
As visitas que envolvam crianças devem ser realizadas em um ambiente propício a uma experiência positiva, incluindo no que se refere ao comportamento dos funcionários.
A capacitação dos funcionários deve ser apta a colocá-los em condição de atender às necessidades especiais das presas para sua reinserção social, bem como treinamento sobre as necessidades específicas das mulheres e direitos humanos das presas, cuidados com a saúde, necessidades de desenvolvimento das crianças que estiverem presentes com as mães, capacidade de detecção de cuidados com a saúde mental e o risco de lesões auto infligidas e suicídio.
Os Estados e instituições devem organizar pesquisas, planejamentos e avaliações para melhor compreender a natureza dos delitos cometidos, as razões que as levaram a entrar em conflito com o sistema de justiça, o impacto da criminalização secundária e o encarceramento de mulheres, suas características, o número de crianças afetadas pelo conflito de suas mães com o sistema de justiça e seu impacto no desenvolvimento da criança.
O governo brasileiro engajou-se nas negociações para a elaboração das Regras de Bangkok e a sua aprovação na Assembleia Geral das Nações Unidas, porém no âmbito interno pouco tem sido feito para aplicação dessas diretrizes. As medidas mais significativas que podemos citar são:
a) a inclusão dos incisos IV, V e VI no art. 318 do Código de Processo Penal;
b) o indulto especial e comutação de penas às mulheres presas que menciona, por ocasião do Dia das Mães, e dá outras providências; e
c) inserção do parágrafo único no art. 292 do Código de Processo Penal, que veda o uso de algemas em mulheres em trabalho de parto, durante o parto e no período imediatamente posterior.
Aplicar as Regras de Bangkok é um compromisso internacional assumido por nosso País e que não pode mais ser postergado. Aliás, o uso do Controle de Convencionalidade como forma de adequação das normas internas aos tratados e convenções internacionais de Direitos Humanos, em especial pela via abstrata, é medida que já deveria estar sendo muito mais difundida. Pouquíssimo se fala acerca desse controle e da necessidade de adequação do ordenamento jurídico interno com os tratados e convenções de Direitos Humanos.
De acordo com o Relatório Nacional Sobre A População Feminina No Brasil [INFOPEN MULHERES], publicado em 2014 pelo Ministério da Justiça, através do Departamento Penitenciário Nacional, a população penitenciária feminina subiu de 5.601 para 37.380 detentas entre 2000 e 2014, um crescimento de 567% em 15 anos.
Ainda de acordo com o relatório, o Brasil apresentava em 2014 a quinta maior população carcerária feminina do mundo, atrás apenas de Estados Unidos [205.400 detentas], China [103.766] Rússia [53.304] e Tailândia [44.751]. Desse total de mulheres, cerca de 58% estão presas pelo crime de tráfico de drogas.
Do total de unidades prisionais no Brasil [1.420], apenas 103 são exclusivamente femininas, 239 mistas e 1.070 masculinas, sendo comum o uso de unidades masculinas para abrigarem mulheres.
Como já apontado no ensaio anterior, é preciso uma mudança urgente de visão sobre o sistema prisional, de modo a compreendermos a essência humana das pessoas que ali estão, principalmente à situação gravíssima das mulheres encarceradas, que ganhou especial destaque e apontamentos na ADPF 347.
Destaque-se que não se trata apenas de uma mudança filosófica, mas sim de verdadeiro respeito aos direitos humanos garantidos constitucionalmente e internacionalmente.
A aplicação das Regras de Bangkok, apesar de aprovadas ainda no de 2010, e do forte engajamento do governo brasileiro em sua elaboração, nas cortes superiores brasileiras, por exemplo, é bastante tímida.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça consta registro em 15 decisões, todas monocráticas, que consideram as Regras de Bangkok. Dessas 15 decisões, apenas 05 foram favoráveis e 10 desfavoráveis.
A primeira decisão a considerar as Regras de Bangkok é de 31 de agosto de 2015, do ministro Rogério Schietti Cruz, no HC 333.831/SP. O caso era de uma adolescente que fora submetida à internação pela prática de atos infracionais análogos ao art. 121, § 2°, I, II e IV e 211 do CP e iniciou o cumprimento da medida quando estava gestante de 05 meses. Após o nascimento da criança e considerando as condições precárias do estabelecimento a Defensoria Pública de São Paulo requereu a concessão de liberdade assistida à menor.
Tal pleito foi indeferido em primeira e segunda instância. Já no STJ, apesar das poéticas considerações à dignidade humana da paciente, o Habeas Corpus foi indeferido liminarmente por ausência de prova inequívoca de que as instalações da internação eram precárias, patente ilegalidade, apta a afastar o óbice da Súmula n. 691 do STF.
Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal apresenta registro em 20 decisões, sendo 03 em acórdãos e 17 decisões monocráticas. Diferente do STJ, que indeferiu a maioria dos pedidos, o STF tem 16 decisões favoráveis e apenas 04 desfavoráveis. A primeira decisão a considerar as Regras de Bangkok é de 01 de janeiro de 2015, do ministro Ricardo Lewandowski, no HC 126.107/SP.
As decisões concentram-se em apenas quatro ministros da Corte. Sendo que o Min. Ricardo Lewandowski é o maior entusiasta das Regras de Bangkok, tendo proferido 08 decisões [todas favoráveis], o Min. Gilmar Mendes proferiu 03 decisões [também favoráveis], já o Min. Celso de Mello proferiu 04 decisões, sendo duas de deferimento total e duas parciais, por fim, o Min. Edson Fachin proferiu duas decisões considerando as Regras de Bangkok e, como bom civilista, denegou ambas.
Por fim, fiquemos com a pergunta: por que há tanta resistência em aplicar normas e tratados de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil no âmbito interno?
Tentaremos refletir de modo mais aprofundado em breve.

Nenhum comentário:

Postar um comentário