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quarta-feira, 20 de novembro de 2019

POR QUE LER PAULINE KAEL

Argumentar que Pauline Kael elevou a crítica de cinema ao status de arte e que deu dignidade literária ao troço não é mentira
GABRIEL TRIGUEIRO
02/11/2019
Época

A crítica Pauline Kael Foto: Erin Combs / Toronto Star via Getty Images

A crítica Pauline Kael Foto: Erin Combs / Toronto Star via Getty ImagesPaulo Francis era um dos seus maiores fãs aqui no Brasil. Não só ele a citava com frequência quando falava sobre cinema, mas o seu tipo de texto (a estrutura do argumento, a mistura de coloquialismo, erudição, fofoca e contextualização histórica e social) era uma forma de soar no Pasquim , na Senhor , na Folha e no Estadão , como ela soava na The New Yorker , de 1968 a 1991. Argumentar que Pauline Kael elevou a crítica de cinema ao status de arte e que deu dignidade literária ao troço não é mentira. Mas pra ser sincero, talvez seja um bocadinho enganoso. Até porque a expressão “dignidade literária” soa de alguma forma meio afetado, e, na real, o texto dela era o contrário disso. Pauline escrevia como quem conversava com amigos, em um café qualquer.

Seu texto destoava da assepsia comum à redação da New Yorker : em uma crítica sobre um filme qualquer, ela podia ser brutalmente agressiva com o diretor, o roteirista, a equipe técnica e quem mais estivesse pela frente. Podia sobrar até para os outros colegas críticos, de quem discordasse. Basta pensar, por exemplo, nos altos e baixos de sua relação com Renata Adler, para ficar apenas no exemplo mais óbvio.
Se você reparar, esse era um modelo analítico, e mesmo estilístico, emulado por Paulo Francis: um pouco a ideia de ser meio que um ombudsman do resto da imprensa. Não bastava analisar um fato X ou Y, era necessário também analisar as leituras da imprensa a respeito. Antes mesmo de escrever na New Yorker , Pauline já demonstrava o que seria sua marca registrada: fluidez coloquial e sofisticação analítica na percepção da via de mão dupla entre estética e política. Por exemplo, em texto publicado como uma introdução a uma antologia de Kael, Philip French, outro crítico, nos recorda que, ainda em 1954, escrevendo para a britânica Sight and Sound, ela analisou dois filmes americanos: À sombra da noite (de Nunnally Johnson) e Salt of the Earth (de Herbert J. Biberman). O primeiro era um thriller anticomunista hollywoodiano, ambientado na Berlim dividida. O segundo uma produção independente sobre uma greve em uma mina de cobre mexicana — um filme financiado por um sindicato de esquerda e estrelado por artistas que haviam sido colocados na lista negra do macarthismo.
Em seu artigo Pauline atacou o panfletarismo bobo de À sombra da noite. O que você até poderia dizer que era o esperado, levando-se em consideração a linha editorial da Sight and Sound e mesmo o seu público majoritário. No entanto, ela não poupou igualmente Salt of the Earth : segundo sua visão, “uma antiquada propaganda comunista”. Muito embora durante a maior parte de sua carreira Pauline tenha circulado nas bolhas liberais culturalmente mais esnobes de Manhattan, afinal de contas ela se tornaria uma espécie de rockstar da New Yorker , talvez tenha sido o seu background como uma garota nascida em uma fazenda, em Petaluma, Califórnia, que permitiu que ela tivesse sempre um olhar crítico, afiado e cético com relação aos seus pares, por um lado, e um tipo de sensibilidade intelectualmente compassiva dirigida às pessoas politicamente e culturalmente diferentes, de outro. Por exemplo, é muito difícil não rir da caracterização do filistinismo cultural, do padrão moral dúplice e da cafonice do liberal típico, feita por Pauline. Ao mesmo tempo em que ela tira sangue dessa turma, isso é feito com alguma graça, com alguma leveza. Ela parte da sensibilidade estética liberal genérica e, a partir daí, faz um comentário geral sobre a política, sobre a filosofia e sobre a cultura que a informa.
No artigo "Fantasias do público do cinema de arte", por exemplo, ela escreve: “O americano educado é, no fundo, um assistente social: sente simpatia especial por essas senhoras desleixadas porque o desleixo delas as caracteriza como desajustadas que não podem funcionar nesse mundo ordenado. O mesmo homem que fica encantado com Marilyn na cena de sedução de Quanto mais quente melhor — atacando Tony Curtis com a carne escapando do vestido na frente e atrás – espera que suas amigas ou esposa sejam certinhas, esbeltas e bem-educadas”. Ainda debochando do público do cinema de arte, sobra até para as famosas aberturas de filmes feitas por Saul Bass: o triunfo da simplificação e da estética da publicidade, segundo ela. O que vale em uma abertura toda bonitona feita por Saul Bass, é a venda (a palavra não é por acaso), feita pelo mesmo designer da AT&T e da United Airlines, da ideia de que você é um consumidor de arte moderno e sofisticado. Nesse ponto o aparato publicitário de um filme não é tão diferente do usado para se vender uma peça de decoração assinada.
Além disso, Pauline identificava o impulso narcisista da classe intelectual liberal (mais uma vez: seus pares) quando reagia a filmes como Doze homens e uma sentença , com Henry Fonda encarnando o típico herói lincolniano admirado em sua bolha liberal: “(...) magro, inteligente, delicado, mas forte”. O problema, entretanto, é que Doze homens e uma sentença foi um fracasso de bilheteria com o grande público e seu sucesso ficou circunscrito a um circuito de arte muito limitado em Nova York. Esse tipo de observação, aliás, já deveria ser o suficiente para demonstrar a cisão cultural e política nos EUA: de um lado, a sensibilidade do grosso da população americana, e do outro a de sua elite letrada.
Pauline Kael argumentava ainda que a audiência americana tinha a tendência de confundir moral com arte, “em detrimento das duas coisas”. E mais: dentro da bolha dos mais educados, moral significava “consciência social”. O pior, segundo ela, era o senso de literalidade dos americanos. Isto é, em um filme como A Aventura, um filme de consciência social implícita, Antonioni era acusado de “não estar dizendo nada”. A consciência social deveria não apenas estar presente, mas, além disso, ser explícita e estar adequadamente embalada em boa publicidade. Em seu famoso ensaio Raising Kane , lançado em duas edições consecutivas da New Yorker ainda no ano de 1971, Pauline disputou a autoria do roteiro de Cidadão Kane e fez a defesa de Herman J. Mankiewicz, em detrimento do próprio Orson Welles. O ensaio, no entanto, foi refutado ponto a ponto por Peter Bogdanovich, na Esquire. Na ocasião, Bogdanovich apontou não apenas erros de análise, mas até mesmo factuais.
Pauline com frequência deixava seu juízo pessoal e subjetivo pesar mais do que qualquer evidência que estivesse à mão. Falando sobre A noiva estava de preto, de Truffaut, por exemplo: “Críticos que ririam de Lana Turner fazendo seu número de femme fatale em mais um filme de Ross Hunter desmaiam quando Jeanne Moreau dá aqueles significativos olhares ausentes para Truffaut”. No fim das contas é isso: lemos Pauline Kael ainda hoje com proveito porque, errando ou acertando, sua voz é única e seus textos, sobretudo os mais controversos, são corajosos, divertidos, intelectualmente independentes e o que de melhor foi feito no jornalismo e na produção ensaística norte-americana durante o século XX. Não é pouco, repare.

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