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quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Ainda precisamos falar sobre a violência obstétrica

Revista Consultor Jurídico, 26 de novembro de 2019
O tema “violência obstétrica” segue extremamente contemporâneo. Primeiro porque, recentemente, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro lançou a cartilha “Gestação, Parto e Puerpério: conheça seus direitos!”[1]
Segundo, pois em maio deste ano, o Ministério da Saúde editou trágico “despacho” em que afirmou: “O posicionamento oficial do Ministério da Saúde é que o termo ‘violência obstétrica’ tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério.”

E completa: “Percebe-se, desta forma, a impropriedade da expressão ‘violência obstétrica’ no atendimento à mulher, pois acredita-se que, tanto o profissional de saúde quanto os de outras áreas, não tem a intencionalidade de prejudicar ou causar dano.” Por isso, “estratégias têm sido fortalecidas para a abolição do seu uso”.
Como se percebe, o debate sobre violência obstétrica no Brasil tem sido atravessado pelo neoconservadorismo e, acertadamente, a resposta das instituições foi imediata. Poucos dias após, o Ministério Pública Federal se manifestou por meio da Recomendação n. 29/2019 no sentido de que “ao negar o termo ‘violência obstétrica’ e pregar a ‘abolição de seu uso’, o Ministério da Saúde desconsidera as orientações da Organização Mundial da Saúde sobre o tema, que, no documento ‘Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde’, assim se pronuncia: ‘No mundo inteiro, muitas mulheres sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto nas instituições de saúde. Tal tratamento não apenas viola os direitos das mulheres ao cuidado respeitoso, mas também ameaça o direito à vida, à saúde, à integridade física e à não-discriminação. Esta declaração convoca maior ação, diálogo, pesquisa e mobilização sobre este importante tema de saúde pública e direitos humanos’".
Definitivamente, negar o termo "violência obstétrica", pregar a "abolição de seu uso" e afirmar "ser expressão inadequada", é negar a existência efetiva da violência no parto, sofrida por milhares de mulheres no Brasil e no mundo.
Em sentido diametralmente oposto do sustentado pelo Ministério da Saúde, a razão está com o professor Júlio Camargo de Azevedo[2], em artigo com título provocativo: “Precisamos falar sobre a violência obstétrica”. Mais que isso: é preciso que a violência obstétrica seja identificada, discutida, trabalhada, prevenida e combatida pelos órgãos oficiais de controle. Tirar a violência da invisibilidade é o primeiro passo para proporcionar melhores condições de assistência à saúde.[3]
A violência obstétrica está impregnada de crenças culturais, com raízes profundas na visão submissa e serviçal da mulher, que foi destituída de seu espaço de construção coletiva de conhecimento empírico, quebrando os elos da sororidade do parto enquanto evento feminino e de reapropriação do corpo, em nome do discurso técnico que nada mais é do que a máscara que cobre a indústria da saúde e a perpetuação da cultura machista, que vê mulher como objeto.[4]
A violência obstétrica atinge mulheres de todas as classes sociais, embora se dê maior destaque ao desrespeito sofrido pelas mulheres na rede pública. As mulheres negras, pobres e periféricas aparecem no topo dessas tristes estatísticas e a causa, sem dúvida, é o racismo estrutural, que conforma as nossas relações sociais. Avançamos para as questões socioeconômicas e nos deparamos com um quadro ainda mais dramático: a extrema vulnerabilidade da saúde das encarceradas.
A violência obstétrica, portanto, deve ser reconhecida e combatida como violência de gênero, nos termos da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), visto que perpetrada em serviços de saúde especificamente contra as mulheres, em relação de vulnerabilidade e subordinação para com os profissionais de saúde, causando-lhes desrespeito à integridade física, mental e moral. Desse modo, a violência obstétrica corresponde a uma forma específica da violência de gênero.
Isso porque a definição de violência contra a mulher foi ampliada a partir da Convenção Belém do Pará, que, em seu artigo 1º, caput, a conceitua como "qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada".
Como violência de gênero que é, portanto, a violência obstétrica deve ser reconhecida e combatida pelos Estados Partes da Convenção de Belém do Pará, incumbindo ao Ministério da Saúde pautar suas ações e manifestações em consonância com os compromissos internacionais assumidos.
E concluem, acertadamente, os membros do MPF: “Que não incumbe ao Ministério da Saúde julgar a conveniência de quaisquer termos ou expressões utilizados pela sociedade civil, ainda mais pregando a ‘abolição do uso’ do termo ‘violência obstétrica’, pretendendo restringir a liberdade de manifestação, conhecimento e ações positivas da sociedade quanto às práticas efetivamente violentas e danosas que diariamente são impostas às mulheres em atendimentos obstétricas e que ocorrem independentemente da intenção do profissional em causar dano”.
Mas afinal, qual o conceito de violência obstétrica? De fato, no Brasil, ainda não há um conceito legal em âmbito nacional de violência obstétrica. Todavia, pode-se utilizar como base o Projeto de Lei n. 7.633/14, em trâmite na Câmara e de relatoria do então Deputado Jean Wyllys que “Dispõe sobre a humanização da assistência à mulher e ao neonato durante o ciclo gravídico-puerperal e dá outras providências.”
O seu art. 13 conceitua a violência obstétrica como “a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres pelos(as) profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, que cause a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.” E complementa: “Para efeitos da presente Lei, considera-se violência obstétrica todo ato praticado pelo(a) profissional da equipe de saúde que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres gestantes em trabalho de parto, em situação de abortamento e no pós-parto/puerpério.”
De uma forma simplificada, portanto, a violência obstétrica se caracteriza por qualquer intervenção institucional indevida, não informada ou abusiva, que incida sobre o corpo ou sobre o processo reprodutivo da mulher, violando sua autonomia, privacidade, informação, liberdade de escolha ou participação nas decisões tomadas.
O art. 14 do Projeto, por sua vez, traz exemplos elucidativos, como:
  • “tratar a mulher de forma agressiva, não empática, com a utilização de termos que ironizem os processos naturais do ciclo gravídico-puerperal e/ou que desvalorizem sua subjetividade, dando-lhe nomes infantilizados ou diminutivos, tratando-a como incapaz” (inciso I).
  • “ironizar ou censurar a mulher por comportamentos que externem sua dor física ou psicológica e suas necessidades humanas básicas, tais como gritar, chorar, amedrontar-se, sentir vergonha ou dúvidas; ou ainda por qualquer característica ou ato físico tais como: obesidade, pêlos, estrias, evacuação, dentre outros” (inciso III)
  • “induzir a mulher a aceitar uma cirurgia cesariana sem que seja necessária, mentindo sobre riscos imaginários, hipotéticos e não comprovados, e ocultando os devidos esclarecimentos quanto aos riscos à vida e à saúde da mulher e do concepto, inerentes ao procedimento cirúrgico” (inciso V);
  • “impedir que a mulher seja acompanhada por pessoa de sua preferência durante todo o pré-parto, parto e puerpério, ou impedir o trabalho de um(a) profissional contratado(a) pela mulher para auxiliar a equipe de assistência à saúde” (inciso X);
  • “submeter a mulher a procedimentos predominantemente invasivos, dolorosos, desnecessários ou humilhantes, tais como” (inciso XII):
    • “induzi-la a calar-se diante do desejo de externar suas emoções e reações” (alínea a);
    • “proceder à raspagem de pelos pubianos (tricotomia)” (alínea f);
    • “utilizar ocitocina sintética [substância que estimula as contrações uterinas] para acelerar o tempo do parto” (alínea h);
    • “praticar Manobra de Kristeller” (alínea L), técnica extremamente agressiva e que consiste em pressionar a parte superior do útero para “facilitar” (leia-se: acelerar indevidamente) a saída do bebê, o que pode causar lesões gravíssimas na mãe e/ou na criança, tais como o deslocamento de placenta, fratura de costelas e traumas encefálicos.
    • “acelerar os mecanismos de parto, mediante rotação e tração da cabeça ou da coluna cervical do concepto após a saída da cabeça fetal” (alínea m);
  • “Realizar a episiotomia quando esta não for considerada clinicamente necessária (...)” (inciso XIII), que consiste em corte no períneo sob o argumento que irá “aumentar a cavidade genital” para auxiliar a passagem do bebê.
Quanto ao inciso V do art. 14, que veda “induzir a mulher a aceitar uma cirurgia cesariana sem que seja necessária”, tal vedação ganha especial relevância num momento em que o parto é tido como um ato meramente médico-hospitalar e a saúde deixa de ser um direito humano fundamental para se tornar “um produto, com foco no lucro do empreendimento e não no bem-estar.” Essa estrutura empresarial, ao contrário de prevenir ou impedir as práticas consideradas como violência obstétrica, cria um ambiente favorável para que tais condutas se estabeleçam e perpetuem. Como produto, mercadoria, o serviço de saúde passa a seguir a lógica da eficiência econômica, o que fomenta rotinas médicas impregnadas de preconceito e machismo, que pressupõe um corpo feminino “doente” e que, por isso mesmo, só funcionará com as intervenções e procedimentos por eles ditados.[5] E, como consequência, fomenta um problema cultural: o desrespeito à autonomia da mulher. Interpreta-se o parto como um ato médico e que deve permanecer sem a participação.[6]
É preciso resgatar o protagonismo e a corresponsabilidade da mulher durante o parto, conferindo a ela as informações necessárias para que efetivamente exerça o seu direito de escolha entre o parto natural e o parto cesariano.
Especificamente quanto ao inciso X do art. 14, se de um lado é vedado expressamente “impedir que a mulher seja acompanhada por pessoa de sua preferência durante todo o pré-parto, parto e puerpério, ou impedir o trabalho de um(a) profissional contratado(a) pela mulher para auxiliar a equipe de assistência à saúde”, de outro,o art. 2º, inciso V, do referido Projeto de Lei garante o direito à “presença, junto à parturiente, de um(a) acompanhante, a ser por aquela indicado(a), durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.”
O que se pretende com os referidos dispositivos é reforçar o já disposto no na Lei n. 8.080/90 (Lei do SUS):
Art. 19-J. Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS, da rede própria ou conveniada, ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.
§ 1º O acompanhante de que trata o caput deste artigo será indicado pela parturiente.
No Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 8º É assegurado a todas as mulheres o acesso aos programas e às políticas de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo e, às gestantes, nutrição adequada, atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério e atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal integral no âmbito do Sistema Único de Saúde. (...)
§ 6º A gestante e a parturiente têm direito a 1 (um) acompanhante de sua preferência durante o período do pré-natal, do trabalho de parto e do pós-parto imediato.
Ademais, o artigo 6º do texto constitucional consagra a proteção à maternidade como um direito fundamental social, e o Título VIII, que dispõe sobre a Ordem Social, retoma a proteção à maternidade na assistência social.
Dentro do marco legal internacional, destaca-se a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979 (Cedaw), que determina que toda a mulher tem direito a uma assistência adequada no pré-parto, parto e puerpério. A assistência apropriada também inclui o direito ao acompanhante, que é um poderoso elemento para prevenir a prática de violência obstétrica.[7]
O que todo este arcabouço normativo pretende garantir é o direito à presença da “doula”, que, nos termos da cartilha recentemente editada pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro “é a profissional que atua na gestação, parto e no puerpério apoiando a gestante na conquista de um parto digno e respeitoso. Ela auxilia na construção da autonomia e no protagonismo das mulheres, fornecendo subsídios técnicos e informações que promovem o alívio da dor (não farmacológico) no trabalho de parto. A toda mulher é assegurado o direito de ser apoiada por uma doula e dispor desse suporte nesse momento.”
Importante dizer que a presença da doula não obriga a mulher escolher entre esta e sua/seu acompanhante. O pai, por exemplo, poderá estar presente durante o parto em nome e exercendo direito próprios. O ordenamento jurídico garante acesso conjunto para que a mulher tenha um suporte de ambos.
Combater a violência obstétrica não é uma questão ideológica. É uma questão constitucional. E por isso ainda precisamos falar sobre ela.

[2] DE AZEVEDO, Júlio Camargo. Precisamos falar sobre a violência obstétrica. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-mai-16/julio-azevedo-precisamos-falar-violencia-obstetrica>. Acesso em: 1 de novembro de 2019.
[3] E SOUZA, Maciana de Freitas; JUNIOR, Francisco Vieira de Souza. A importância do debate sobre violência obstétrica. Disponível em: <http://www.justificando.com/2019/05/20/a-importancia-do-debate-sobre-violencia-obstetrica>. Acesso em: 1 de novembro de 2019.
[4] VALLE, Daniela. Meu corpo, suas regras?. Disponível em: <http://www.justificando.com/2016/08/31/meu-corpo-suas-regras>. Acesso em: 1 de novembro de 2019.
[5] VALLE, Daniela. Mercantilização da saúde e violência obstétrica. Disponível em: <http://www.justificando.com/2017/07/26/mercantilizacao-da-saude-e-violencia-obstetrica>. Acesso em: 1 de novembro de 2019.
[6] Trecho da entrevista da Promotora de Justiça do Estado de São Paulo Fabiana Paes à Revista Isto é, como título “Violência Obstétrica: Por que as mulheres ficam sozinhas no Parto?”. Disponível em: <https://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/08/violencia-obstetrica-por-que-mulheres-ficam-sozinhas-no-parto.html>. Acesso em: 1 de novembro de 2019.
[7] PAES, Fabiana. A importância do direito ao acompanhante para prevenir a violência obstétrica. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-ago-12/mp-debate-importancia-acompanhante-prevenir-violencia-obstetrica#_ftn4>. Acesso em: 1 de novembro de 2019.
Luís Henrique Linhares Zouein é defensor público substituto do estado do Rio de Janeiro e pós-graduado em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

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