Há dois anos, o filósofo e psicólogo
alemão Richard David Precht lançou o livro Quem sou eu e, se sou, quantos sou? e se
tornou um best-seller mundial. A obra, que respondia a perguntas existenciais
sob o ângulo da filosofia, mas com linguagem simples, foi traduzida
em 20 idiomas e vendeu um milhão de exemplares. Agora ele lança Amor, um Sentimento Desordenado (Casa da
Palavra), com o qual pretende jogar luz sobre o sentimento mais importante – e
indecifrável – do mundo contemporâneo. Precht analisa o quanto há de real
diferença entre a natureza de homens e mulheres e critica os manuais de
auto-ajuda que se multiplicam no mercado
Abaixo, a entrevista com o
autor:
Por que você diz que livros de
autoajuda sobre o amor não ajudam realmente?
Porque, basicamente, eles têm um
pilar duplo, talvez duplamente enganoso: a promessa de que o amor duradouro
pode ser aprendido e a pretensão que as pessoas mudam. Será mesmo verdade? Em
primeiro lugar, a ilusão de que mesmo – e, sobretudo, – quando o amor entra em
espiral decrescente, basta conhecer certo número de truques e pronto, tudo fica
lindo. A realidade desaparece, a magia volta, nossa razão crítica fica
embotada, a chama do desejo reacende. Pura mágica! Em segundo lugar, esses
manuais vendem a ilusão de mudança. Os psicanalistas que o digam, mudar não é
algo que possa ser reduzido ao simplismo superficial de ato de vontade. Ninguém
muda da noite para o dia seu próprio sentimento de identidade só porque fica
subitamente contaminado com algumas ideias inteligentes.
Se eles não ajudam, por que existem
em quantidade cada vez maior no mercado?
É delicado falar sem parecer
antiético, ou grosseiro, mas um grande número de pessoas, no contexto atual em
que vivemos, de soluções rápidas e muitas vezes superficiais, tende a aceitar
com facilidade o que lhes é oferecido, sempre com a ilusão de que o produto –
na verdade uma mera mercadoria, em geral – foi customizado para ela. Veja-se o
exemplo dos smartphones: eles vendem a promessa de centralização de gostos, contatos,
memória, imagens, ligações afetivas etc. O problema é que as pessoas gostam de
ouvir da boca de um oráculo as grandes verdades que nos definem.
A partir de que perspectivas as
relações amorosas pode ser mais bem analisadas: neuroquímica, biológica,
psicológica…?
Não sei se uma das perspectivas,
única e isoladamente, pode ser a melhor. Nós somos seres animais que vivem num
contexto cultural. E somos evidentemente dotados de uma memória individual e
coletiva, consciente e nem tanto… Se considerarmos o amor como o eixo de um
relacionamento, talvez devêssemos, então, tomar emprestada a concepção de
“experiência universal”, do romântico Friedrich Schlegel: quando a vida não tem
mais um significado sobrenatural, o amor nos traz esse significado de volta.
Todos nós queremos algo mais, algo que nos distinga da mera esfera de base.
Esse sobrenatural, que eu chamaria de “supranatural”, nos eleva. Uma coisa é
falarmos de “sujeito”, de “indivíduo”, de “Homem” (com H maiúsculo), outra bem
diferente é falarmos de pessoas reais, que não podem ser objeto de análise
desta ou daquela esfera concisa.
No livro, você diz que “o amor não é
uma emoção.” Pode explicar?
Quando digo que o amor não é um
sentimento, é porque ele é um sistema de promessas e expectativas. A relação
amorosa é uma via de mão dupla, em que cada um promete ao outro que o que ele
sente é confiável e, mais, que vai dar ao outro o que ele espera: compreensão,
cuidado, atenção. O que as pessoas querem, numa relação amorosa, é
perfeitamente esperável, não é difícil imaginar quais são as expectativas do
outro, porque elas se inserem num espectro fechado, determinado. Da mesma
forma, acreditamos que o outro também sabe o que esperamos dele, porque
imaginamos que ele nos avalia corretamente, nos conhece. O amor é um jogo de
regras determinadas e fixas, um sistema de expectativas, dotado de um código
próprio.
Na sua opinião, a natureza dos homens
e das mulheres permite, de fato, o compartilhamento, a divisão do dia-a-dia, da
vida?
Raramente refletimos sobre nossos
sentimentos. Os sentimentos são a cola que nos mantém unidos. E o casamento é
ocasião e terreno de aconchego, de bem-estar. Além disso, entre nossos
sentimentos mais emocionantes estão os nossos desejos. Ninguém vive sem desejos
nem sem um desejo bem determinado: o de amar e ser amado, que tem um estímulo
emocional. Para mim, a capacidade de se apaixonar é o maior e mais belo enigma
da evolução. Precisamos de vínculo e de compreensão, ansiamos pela felicidade,
temos carência de sentimento de valor e de identidade. Talvez um ponto
importante de reflexão seja o equilíbrio da noção de amor romântico: damos a
ele uma moldura, no qual ele pode se expandir. Mas ele evolui, se complica e,
em geral, a moldura não cresce junto. Nenhuma moldura garante um estado
emocional estável e intimidade. Fundamental é saber o que queremos, o que exige
por sua vez um processo de individuação sério. A moldura e o quadro de fundo
precisam ter as mesmas dimensões. O casamento pode funcionar se o sentido de
realidade e o de possibilidades estiver em equilíbrio.
Por que alguns autores ainda insistem
em comparar as relações de hoje com a idade da pedra, dizendo que as mulheres
querem homens caçadores, provedores, e os homens procuram mulheres mais
férteis?
É delicado falar sobre o que move
outros autores, mas talvez possamos dizer que o cientificismo sempre atrai, e
dá a ilusão de embasar de modo indiscutível uma proposição. Por isso as
explicações fundamentadas na diferença cerebral entre homens e mulheres é mais
fácil de ser entendida, aplicada e vendida do que explicações mais elaboradas.
Como comentei numa resposta anterior, tendemos a gostar de explicações do tipo
oráculo, de soluções prontas. Mas nem todo mundo bebe na mesma fonte, e muitos
são hoje os que procuram parceiros e parceiras fora do estereótipo. Senão, como
explicar o crescente número de homens que preferem mulheres mais velhas, apesar
da regra aparentemente universal de escolha de uma mulher muito mais jovem,
quando se chega à meia-idade? Seja como for, essa insistência de certos autores
está ligada à noção de módulos de comportamentos típicos de gênero, o que ainda
tem uma forte característica religiosa. Pois ninguém ignora que uma parte
significativa daquilo que compõe nosso comportamento de gênero e nossa
autoimagem origina-se não só da biologia, mas também da evolução cultural – o
que faz as mulheres preferirem o perfume de um desodorante ao cheiro de suor.
Quais são as características do mundo
atual que dificultam a percepção real do que é o amor? Muitos filmes românticos
e novelas, por exemplo?
Uma somatória de características, eu
diria. A noção de amor como realização pessoal, as falsas ilusões e promessas
vendidas e que acabam gerando uma pressão e um a priori, uma falsa ideia de
romantismo e, em consequência, de amor romântico, um baixo nível de autoconhecimento
– o que nos faz colocar os anseios e expectativas no lugar muitas vezes errado
–, a confusão que ainda se faz de individuação e individualização, a cultura de
massa (da qual faz parte, evidentemente, uma avalanche de filmes românticos), a
promessa de paraíso na terra… A lista é grande. Mas talvez possamos dizer que
um ponto essencial é a crença de que a felicidade mora fora de nós. O que a
transforma em objeto de consumo.
No nosso tempo, as pessoas amam amar.
Isso é ruim?
Não necessariamente, mas as coisas
têm de estar muito claras. Uma coisa é gostar de amar. Outra coisa é amar a
ideia de amar. Quantas pessoas nós não conhecemos, que se apaixonam pela ideia
de se casar, viver feliz para sempre, poder dizer “meu marido”, ou “minha
mulher”, e que acabam procurando e muitas vezes encontrando alguém que
simplesmente encaixe no seu sonho pré-determinado? Evidentemente isso
instrumentaliza a outra pessoa. Além disso, como evoco no livro, a frase de La
Rochefoucauld, segundo a qual nós não nos apaixonaríamos se não tivéssemos
ouvido falar na paixão, pode ser ampliada, pois não nos comportaríamos de
maneira romântica se não aprendêssemos pela mídia como funciona o romantismo.
Os homens e mulheres realmente têm
naturezas diferentes e, de fato, pensam diferente sobre o amor? A maioria dos
guias de autoajuda afirmam que entender a natureza do sexo oposto é o caminho
para um bom casamento.
Mesmo sabendo que pesquisas
demonstram que a testosterona tem uma forte influência em nossas emoções, nossa
memória e, claro, em nosso comportamento sexual, que o hipotálamo é
determinante nas diferenças de funcionamento de uns e outras, sem falar dos
hormônios etc. etc., a questão não me parece tanto a diferença entre a natureza
masculina e a feminina, mas sim a natureza humana. Como eu cito no livro, ela é
algo semelhante ao Santo Graal, procurada desde sempre, nunca encontrada. Como
um guia de autoajuda pode indicar pistas sobre um tema tão complexo? Sobretudo
vale lembrarmos o que nos fiz Michel Foucault: homens e mulheres representam-se
no cotidiano e, com isso, produzem o que supostamente são.
No livro, você faz uma citação:
“muitos falam sobre amor e família, como nos séculos passados as pessoas
falavam sobre Deus.” Essa ideia de amor e casamento é, de alguma forma, a
grande religião do mundo ocidental?
Realmente hoje em dia a pressão da
procura quase sôfrega por sexo e amor, embriaguez e satisfação preenche espaços
nos quais antigamente o projeto de construção previa um deus. Até porque é
inegável que para muitas pessoas o medo da solidão – aquele mesmo que faz ligar
a TV o tempo todo, para não ter a sensação de estar só – impele a essa busca
desenfreada. E o casamento também é, em algumas sociedades mais do que em
outras, uma mercadoria que movimenta cifras impressionantes. E cria-se um
mercado. Sem desdenhar o poder da própria religião, que eterniza o modelo.
A crescente liberdade sexual não
deveria ter reduzido a ideia do amor, do casamento e da monogamia?
Talvez, mas o ser humano prefere
pensar, para se sentir supra-humano, que não é verdade que ele não foi feito
para uma felicidade constante, duradoura, apenas para o sonho dessa felicidade.
E o casamento e a monogamia reforçam essa esperança.
Qual deve ser o principal pensamento
de alguém que acredita que só será feliz se encontrar o amor?
Para essa última resposta, recorrerei
a Darwin. Em 1757, ele disse: “Independente de quanto o ser humano possa ser
classificado como egoísta, há com certeza determinadas predisposições básicas
em sua natureza que fazem com que ele sinta necessidade de fazer parte do
destino e da felicidade de outras pessoas, embora sua única vantagem seja o
prazer de testemunhar isso”. Quanto mais as relações culturais se complicam,
mais esperto o ser humano. E quanto mais esperto o ser humano, mais complicada
é sua cultura. Herbert Spencer transferiu para a sociedade o princípio de
Darwin, de uma evolução incessante, de um natural progresso social. Das
estrelas passando pelos musgos e toupeiras, até o ser humano, tudo é impelido
em direção ao que há de melhor e mais perfeito – até a harmonia mais perfeita
possível. E a harmonia, acredito, está no simples.
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