ENTREVISTA: Humberto Maturana e a importância do amor
O
médico e biólogo Humberto Maturana propõe que o cultivo do amor seja um caminho
para a realização humana e a coragem de se questionar, a única alternativa de
quem ambiciona a paz.
Texto
Cecilia Reis / Foto Fred Busch
Em 2000, Maturana e sua parceira, a
professora Ximena Dávila, fundaram o Instituto Matriztico, em Santiago, no
Chile. Em 2010, esse centro tornou-se a Escuela Matríztica Santiago, espaço que
estimula a conversa e a reflexão sobre a natureza humana e as relações entre os
homens. Eles estiveram recentemente no Brasil, participando de um workshop
promovido pelo Caravanserai Eventos e pelo Instituto Pallas Athena, de São
Paulo. Nesta entrevista, a dupla fala sobre amor, dor e reflexão. E nos convida
à prática da reflexão como caminho para um mundo melhor.
BONS
FLUIDOS: O que significa colocar o amor como um fundamento biológico do ser
humano?
Humberto Maturana: O
ser humano não vive só. A história da humanidade mostra que o amor está sempre
associado à sobrevivência. Sobrevive na cooperação. Se a mãe não acolhe o bebê,
ele perece. É o acolhimento que permite a existência. Numa de suas parábolas,
Jesus fala do camponês lançando sementes ao solo. Algumas caem nas pedras e são
comidas pelas aves, outras caem num solo árido e resistem por pouco tempo. Mas
há aquelas que encontram boa terra e crescem vigorosas. Assim também nós
precisamos de um solo acolhedor para nos desenvolver. Nosso solo acolhedor é o
amor.
BF:
Como a senhora, uma cientista, pode definir o amor?
Ximena Dávila: Esse
não é um fenômeno eventual, mas uma condição básica e cotidiana que define as
relações entre os humanos. Amar é uma atitude em que se aceita o outro de forma
incondicional e não se exige ou se espera nada como recompensa. Amar implica
ocupar-se do bem-estar do outro e do meio ambiente. Em vez de oferecer
instruções do que e como fazer, amar é respeitar o espaço do outro para que ele
exista em plenitude.
HM: O
amor é a emoção fundamental que tornou possível a história da humanidade. Ele
determina as condutas humanas, que, por sua vez, tecem o convívio social,
entendendo aqui emoção não como um sentimento, mas como formas de relacionamento.
O amor nos dá a possibilidade de compartilhar a vida e o prazer de viver
experiências com outras pessoas. Essa dinâmica relacional está na origem da
vida humana e determinou o surgimento da linguagem, responsável pelos laços de
comunicação e que inclui ações, emoções e sentimentos.
BF:
Na essência, todos nós somos criaturas amorosas?
HM: Todas as nossas condutas, mesmo aquelas que
chamamos de racionais, dão-se sob o domínio básico de uma emoção, o amor. Não o
amor místico, transcendental ou divino, e também não uma virtude especial de
alguns, mas um tipo de relação em que todos se mantêm fiéis a si mesmos. Amar
não é um substantivo, é um verbo, uma dinâmica relacional espontânea.
XD: Todos
nós nascemos amorosos, mas vivemos em um momento histórico em que predominam
relações de dominação, sentimentos agressivos, arrogância e competição, que se
contrapõem aos fundamentos amorosos. Isso é o oposto do amar, pois amar é um
respeito pela individualidade. Amar nos permite ser vistos, ter presença, ser
escutados, enfim, existir como pessoa. É um tipo de comportamento em que não há
expectativas e preconceitos – impera a aceitação do outro da forma como ele
existe. O que estamos propondo é apenas recuperar em nós o que é constitutivo
do nosso ser.
BF:
Para vocês, o mundo é, de fato, um espaço acolhedor?
HM: O
mundo sempre foi maravilhosamente acolhedor. Se assim não fosse, a história do
ser humano não teria acontecido. Um ser só sobrevive em um entorno que o
receba. Caso contrário, torna-se negativo e agressivo e não resiste. Apesar de
vivermos um momento de negação do amor, só sobrevivemos porque essa emoção
persiste nos vínculos que definem a vida em sociedade. É no amor que alcançamos
o bem-estar e realizamos nossa condição humana.
BF:
Normalmente entendemos o amor como uma relação idealizada, perfeita. Isso é um
equívoco?
HM: Perfeição implica expectativa. Isso não é amor para
nós. O amor verdadeiro não exige nada, não pede retribuição. Quando surge a
exigência, desaparece o amor. Ele não admite críticas, pois elas significam a
imposição dos desejos de alguém sobre outra pessoa e isso dissipa o prazer de
estar junto.
BF:
Se o amor é um fundamento do ser, como surge o desamor?
XD: O
útero é um espaço de boa terra de onde “brotamos” convencidos de que o mundo
nos receberá e cuidará de nós com ternura e respeito. Se assim for, conseguimos
conservar a configuração emocional própria de seres amorosos. Entretanto, o
nosso estilo de vida pode nos conduzir a um processo de autodepreciação, uma
armadilha criada pelos padrões da cultura contemporânea. Para rebater esse
mal-estar consigo mesmo, um drible são as conversas reflexivas – um exercício
de autoconhecimento em que revelamos o que vivemos e como vivemos. Refletir não
é pensar, mas agir de modo a perceber o sentido da própria existência e
realizar nossa natureza amorosa.
BF:
Alguém que nasceu no desamor pode se reestruturar?
XD: Sempre
existe espaço para transformação. Num clima de desamor, esse processo traz
sofrimento. Mas a dor tem sua função: ela faz refletir e nos permite examinar
nossas atitudes conosco e com a sociedade e decidir se queremos continuar
naquela direção ou não. Somos continuamente mutantes. Podemos gerar mundos
distintos todos os dias e isso traz esperança. Nascemos com o potencial de
cultivar espaços de bem-estar, capazes de ampliar a amorosidade que vivenciamos
no útero materno. E, como seres amorosos, temos a capacidade de ressurgir do
sofrimento.
HM: Cada qual tem de assumir o próprio processo de
mudança. Não se pode querer transformar o outro. Isso não é um ato de amor
verdadeiro – quando tentamos mudar o próximo, estamos visando nossos próprios
interesses e valores. A transformação deve ser feita por cada um de nós e para
o nosso próprio bem. Se alguém não merece seu amor, não tente interferir na sua
conduta. Afaste-se. Você tem liberdade de escolher com quem quer estar.
BF:
Qual o sentido do sofrimento?
HM: A dor nos faz perguntar. Apesar de difícil, é uma
oportunidade única de transformação, assim como a curiosidade, que não nos
permite submissão aos padrões externos. Quando tropeçamos dói o pé. Isso faz
pensar sobre o modo de andar, a atenção ao caminhar, os desafios do trajeto. A
dor da alma também ensina. Se alguém me repudia, tenho de perguntar o que estou
fazendo para que isso aconteça. Investigar é oportunidade para crescer.
BF:
E onde nasce a dor?
XD: Como
seres criativos, precisamos de um ambiente que nos permita a expressão plena da
nossa natureza amorosa. A dor surge de experiências decorrentes do desamor em
que a pessoa aceita e, portanto, acredita que merece não ser amada. Para
superar esse sentimento, ela tem de se reconectar profundamente com essa
natureza. E reconhecer que as expectativas colocadas sobre ela são demandas
arbitrárias próprias de uma cultura centrada no resultado e na competição.
Enxergar tudo isso muitas vezes depende de um estímulo externo, uma conversa
desprovida de expectativas e julgamentos.
BF:
Viver é um esforço, aqui entendido como sofrimento?
XD: O
único caminho possível é a reflexão. Mas refletir não pode ser encarado como um
esforço. Se há esforço significa que estamos procurando soluções. Isso não é
reflexão. Refletir é conseguir recuar da cena para enxergar – e entender – a
situação por outro prisma e encontrar uma nova direção a seguir.
BF:
Nesse sentido, o que significa refletir para a senhora?
XD: A
pergunta primordial é: gosto de viver o que estou vivendo? Quando me disponho a
essa pergunta, já estou revendo minhas posturas, fora do âmbito da dor e da
angústia. A conquista da consciência passa por outras perguntas: será que o meu
desejo é uma imposição do outro? Será que eu quero o que imagino que quero? A
reflexão guarda o desejo de se transportar para uma realidade melhor. O
processo pode ser desconfortável. E é justamente quando o bem-estar desaparece
que surge a oportunidade de encarar as emoções que nos povoam.
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