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terça-feira, 14 de maio de 2013


A história de uma mãe

WALCYR CARRASCO

Walcyr Carrasco (Foto: reprodução)
WALCYR CARRASCO
é jornalista, autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão 
Conheço uma mulher que dedicou a vida à filha. Empregada doméstica, seu parceiro deu o sobrenome à criança, mas nunca se casaram. Vivendo em barraco numa favela carioca, a mãe temia o que pudesse acontecer. Encontrou a melhor solução: botou a menina na escola. Inventou cursos paralelos, que pagava com dificuldade, para que ela não ficasse sozinha na comunidade e, mais tarde, numa modesta casa de periferia que conseguiu comprar. Finalmente, botou a garota na escola de natação. Deu certo. Adolescente, ela foi selecionada para a equipe de polo aquático de um grande clube carioca. Participou de campeonatos fora do país. Encheu a parede de medalhas. A mãe continuava atenta. Passou a só aceitar empregos onde a filha pudesse ficar após o término das aulas. Ao final do trabalho, voltavam juntas para casa. Tinha projetos:

– Ela vai estudar educação física. Ter o que não tive.

Desejar uma realidade diferente da própria aos filhos é comum. Mãe que é mãe reflete seus desejos, como se a vida dos filhos fosse um espelho mágico, capaz de transformar sonhos em realidade. Mas, no caso dessa mulher, o espelho estilhaçou, partindo sua vida em pedacinhos.

Na última vez que fui para Miami, há pouco mais de um ano, soube da notícia ao voltar. A garota, de 17 anos, fugira de casa. Deixou uma carta com uma série de acusações, como falta de liberdade para namorar. Ameaçou com processo por maus-tratos. Mentira. Espancada não era, poucas vezes vi uma filha tão amada. A acusação mais feroz é que a mãe nunca a deixara ir sozinha a um baile funk.

Embora nunca tenham vivido juntos, a mãe tinha contato com o pai. Foram os dois à delegacia. Ouviram uma resposta desinteressada: seria inútil procurar a garota e levar para casa, porque ela fugiria novamente. Estranhei a postura policial, já que temos uma lei de proteção ao menor. Se essa lei tem sido tão eficiente para proteger jovens que matam, não deveria ser também ágil para buscar quem foi aliciada?

Pois, obviamente, a garota foi aliciada por alguém que lhe ofereceu guarida. Rapidamente, ela trocou o número de celular e não forneceu o novo à mãe. Passou a ligar muito eventualmente, sempre para brigar. Cada vez que a mãe tentava procurá-la por meio de amigos em comum, a filha telefonava para ameaçar. Desapareceria para sempre se a mãe fosse atrás dela.

A mãe manteve o quarto da filha como era. Quem sabe, um dia voltasse. Com o tempo, foi surpreendida por aspectos da vida da menina que não podia imaginar. Entre as quais, uma página no Orkut, onde se descrevia como “safadinha”. Disse, entre lágrimas:

– Ela mudou completamente depois que ganhou um celular com internet. Passava horas conversando, mas eu pensava que era com as amigas.

Fico pensando: quem essa menina conheceu? Com quem se relacionou? Gente bem-intencionada não é. Sendo sincero, acho normal adolescente buscar independência. Até mesmo querer fugir de casa. Eu mesmo, quando garoto, pretendi fazer isso muitas vezes. Que filho nunca se rebelou? É saudável se afirmar diante dos pais. Buscar caminhos próprios. Isso provoca lágrimas, discussões, mas é uma parte importante do crescimento individual. Pais e filhos, com o tempo, aprendem a conviver com as próprias diferenças. Mães descobrem que o filho nunca será a imagem de seu sonho refletida no espelho. Mas que isso não é trágico. Em torno da família, há uma rede de parentes e amigos, gente que se conhece e participa dessa relação, por mais conflituosa que seja.

Só que, hoje em dia, essa rede se tornou gigantesca. Anônima. Quem essa menina conheceu pela internet? Com quem passava horas falando? Enfim, quem a ajudou a fugir da casinha pobre da mãe? Onde se alimenta? Dorme? Às vezes a garota liga, diz que está trabalhando. Mas não fornece o número do celular nem o endereço. Conhecidos que a viram eventualmente dizem que anda bem vestida, arrumada.

– Deve ter casado – diz a mãe.

Sei não. Se casou, porque o marido se esconde? Melhor nem pensar na resposta. A filha já fez 18 anos. Não telefonou no Natal nem no aniversário. Agora, a mulher tem esperança que ligue no Dia das Mães.

– Pelo menos para ouvir sua voz.

Sou sincero, a história me corta o coração. Penso como nós, filhos, somos capazes de ser egoístas. E também me arrepio. Adoro a internet. Mas não sei como lidar com esse mundo desconhecido e anônimo, que pode roubar quem a gente ama a qualquer momento. 

http://revistaepoca.globo.com//vida/walcyr-carrasco/noticia/2013/05/historia-de-uma-mae.html

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