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domingo, 23 de fevereiro de 2014

Aconselhamento genético chega ao SUS, mas política enfrenta críticas

Para geneticistas e associação de pacientes de doenças raras, política do Ministério da Saúde pode limitar e centralizar o atendimento

AMANDA POLATO

No Brasil, pessoas com doenças raras sempre enfrentaram dificuldades para encontrar serviços de diagnóstico e tratamento, antes muitas vezes restritos a hospitais universitários, centros de pesquisa e redes particulares. Anunciada neste ano, a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras deve investir R$ 130 milhões na organização de uma rede de atendimento que será gratuita para a população. Pela primeira vez, o aconselhamento genético será oferecido no Sistema Único de Saúde (SUS), que terá ainda 15 novos exames de diagnóstico em doenças raras.

Embora atenda uma demanda antiga da sociedade, a política recebe críticas de geneticistas e famílias de pacientes. O principal questionamento está na definição de que profissional poderá fazer o aconselhamento genético, que pode incluir exame físico, diagnóstico de doenças de origem genética, estimativa de riscos e orientações sobre tratamentos. A Portaria 199, publicada na semana passada para instituir a política, diz que a função cabe ao médico geneticista ou profissional com especialização em aconselhamento genético, uma pós-graduação que ainda não existe no país.

Nesta semana, Mayana Zatz, diretora do Centro de Pesquisas do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) e professora de genética na Universidade de São Paulo, divulgou uma nota pedindo a revisão urgente da portaria. “Não é difícil prever que, com essa limitação, a grande maioria das famílias com doenças genéticas não terá acesso ao AG [aconselhamento genético]”, diz o texto, publicado no site do CEGH-CEL no dia 16. A pesquisadora destaca que, no Brasil, há menos de 200 médicos geneticistas – são 162 registrados como sócios da Sociedade Brasileira de Genética Médica (SBGM). “É extremamente preocupante que essa portaria exclua centenas de profissionais, com pós-graduação em genética humana (biólogos, biomédicos e outros profissionais de saúde), altamente especializados, que vêm realizando AG há décadas e que não poderão atender as famílias de afetados. Essa portaria vai na contramão do que ocorre nos países do primeiro mundo”, afirma Mayana.

Segundo ela, é responsabilidade do médico examinar o paciente e estabelecer um diagnóstico clínico, sempre que possível, mas o aconselhamento genético não deve ser de exclusividade dele. “Há, inclusive, inúmeras situações em que não existem pacientes a serem examinados. Por exemplo, um casal de primos que procura um serviço de genética, porque quer saber qual é o risco, decorrente da consanguinidade, de que uma criança que venha a ter apresente doença genética.”

Para o presidente da Sociedade Brasileira de Genética e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, Samuel Goldenberg, a restrição do aconselhamento genético para médicos é preocupante. “Com as ferramentas atuais da genética molecular, a interpretação de um resultado requer conhecimentos que certamente não são administrados nos cursos de medicina formais. Portanto, o fator determinante deve ser a qualificação em genética médica que, em geral, vem de uma pós-graduação na área.” Goldenberg afirma que a política vem até tarde, considerando a relevância para a população, mas os termos restritivos acabam prejudicando o seu impacto para a saúde pública.

O médico José Eduardo Fogolin, coordenador da área de média e alta complexidade do Ministério da Saúde, defende que o aconselhamento genético seja feito por um médico ou aconselhador genético porque não se trata apenas de determinar a probabilidade de um gene se expressar na sua transmissão e, sim, uma avaliação superior, que depende do diagnóstico. Segundo ele, pela legislação brasileira, o único profissional que pode fazer isso é o médico geneticista. “Para fins de diagnóstico em doenças raras, o aconselhamento genético precisa ser feito por quem hoje tem responsabilidade legal, por quem possa fazer e tenha essa formação.” Fogolin afirma que, para fins de pesquisa, a restrição não se aplica.

Mesmo quando não há a necessidade de um exame físico, as orientações vindas de alguém com conhecimento médico são imprescindíveis, afirma Lavinia Schuler-Faccini, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica (SBGM) e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “No caso de um casal de primos, por exemplo, digamos que se detecte um risco específico, e eles perguntem: ‘O que podemos fazer?’. Se, mesmo sabendo do risco, o casal decide engravidar, um médico deve dar recomendações e indicar cuidados que possam ajudar na gestação de uma criança saudável.”

Segundo o coordenador do Ministério da Saúde, a pasta já colocou em discussão com universidades e sociedades de genética e genética médica a criação de um curso para aconselhador genético. “Isso vem num segundo momento, a partir de 2017. O primeiro momento é ampliar o acesso ao aconselhamento. Depois, precisamos ter uma programação, uma grade curricular a ser aprovada para instituir [a pós-graduação]. Hoje nós não temos isso. O aconselhador poderá ser um biólogo, enfermeiro, médico ortopedista, diversos profissionais.” A presidente da SBGM afirma que já há cursos em estudo na Universidade de Campinas (Unicamp) e na UFRGS.

Demanda dos pacientes

Toda a discussão pode estar longe das demandas reais dos pacientes de doenças raras. Para a Associação de Atenção aos Familiares e Pacientes de Doenças Raras (Amavi), a nova política do Ministério da Saúde é um passo importante, mas é difícil prever um grande impacto. Restringir o financiamento a serviços de referência em doenças raras com ao menos um médico geneticista pode dificultar a ampliação do atendimento. “O que vemos na Portaria é um grande foco na genética. Mas, para os pacientes com doença rara, a principal demanda é o acesso a equipes multiprofissionais qualificadas para tratamento”, diz Sandra Mota, representante da Amavi e mulher de um paciente com esclerose lateral amiotrófica. Ela diz que, mais do que testes genéticos, falta acompanhamento clínico.

De acordo com Sandra, os atendimentos existem em poucos lugares, que ficam nas grandes capitais do país. “Precisamos de uma descentralização dos serviços. Mesmo para quem mora em São Paulo, é difícil transportar por duas ou três horas uma pessoa até o centro. Muitas vezes, o paciente que não conseguiu atendimento precoce busca ajuda quando já está em estado crítico e acaba indo para a UTI.”

O Ministério da Saúde diz que, no país, existem mais de 240 serviços que podem promover ações de diagnóstico e assistência completa, com a oferta de tratamento adequado e internação nos casos recomendados. O médico José Eduardo Fogolin, afirma que, como 80% das doenças raras são de origem genética, proporcionalmente, 80% dos serviços especializados que cuidam de mais de uma doença deverão ter um geneticista para fazer o aconselhamento genético. “A política não determina que cada cidade deva ter um médico geneticista. Em qualquer localidade, uma pessoa com suspeita de doença genética será encaminhada para um centro de referência. É ele quem vai fazer o aconselhamento genético. Damos essa possibilidade para todos. Quem for ao SUS vai ter essa garantia, em rede.”

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