by mairakubik
Grupos fazem rondas em bibliotecas em busca de livros que tragam a palavra maldita e pressionam as instituições a retirar das prateleiras obras que façam menção a ela. Um abaixo-assinado na internet com mais de 30 mil nomes exige que um determinado filme não seja exibido na TV aberta. Pais e mães ameaçam impedir as crianças de irem à escola caso tal expressão continue sendo ensinada — e alguns de fato o fazem. Protestos de rua são organizados e, um domingo em Paris, contam-se 100 mil nas ruas, gritando palavras de ordem não muito diferentes da Alemanha nazista. O governo se vê obrigado a fazer pronunciamentos sobre o caso, tentando acalmar os ânimos. Páginas e mais páginas de jornais e minutos na TV são gastos discutindo-no.
Hoje, a dita “teoria do gênero” é sem dúvida um dos assuntos que mais perturba a França.
O estopim do debate que toma conta do país foi a divulgação, em janeiro, do projeto “ABCD da igualdade” pelo Ministério da Educação e pelo Ministério dos Direitos das Mulheres. Aplicado desde o início do ano em algumas escolas em caráter experimental, o ABCD traz uma série de atividades, como jogos de “queimada” e aulas de história da arte, pensadas por pedagogxs, com o objetivo de promover a igualdade de gênero e combater os estereótipos de “masculino” e “feminino”.
A escola, dizem xs apoiadores da medida, é um lugar laico, onde deve-se ensinar que todxs têm direitos iguais e que as diferenças decorrem de uma construção social, não de uma vocação “natural”. Em outras palavras, não é porque determinadas pessoas têm certas características físicas que elas são inferiores a outras e/ou podem ser tratadas como tal. E “gênero” é justamente o conceito que permite refletir sobre essas relações de poder, retirando-as seu caráter essencialista. Tais ações, justificam ainda, estariam previstas em lei desde 1989.
Já aqueles que convocaram a reação ao ABCD acreditam que é preciso apegar-se à Biologia como ciência mestra para preservar a “integridade” dxs estudantes. Tal posicionamento foi, no entanto, rapidamente contestado por biólogxs e professores da área, que escreveram um manifesto bastante razoável lembrando que a humanidade é ricamente forjada na cultura, com conhecimentos acumulados durante milhões de anos, e não apenas um bando de corpos físicos.
Por que, afinal, em pleno século XXI, os estudos de gênero seriam tão problemáticos para alguns?
Refletir sobre o gênero significa mexer com a ordem das coisas e questionar o que aparentemente está estável. E isso incomoda.
A cada vez que novos caminhos são abertos em direção a uma sociedade mais horizontal, há uma reação contrária por parte daquelxs que não querem compartilhar seus privilégios. Pouco tempo antes do ataque ao gênero, o foco foi a luta contra a aprovação do casamento homossexual: certas pessoas acreditavam que esse direito era exclusivo delas. O mesmo ocorreu com a reprodução assistida e a defesa de que apenas mulheres heteros deveriam utilizar a técnica — algo que, por enquanto, se mantém.
Agora, a ideia é simplesmente impedir as as crianças de terem acesso ao conhecimento. Querem que parem de ensiná-las a pensar. Nada poderia ser mais perigoso.
“Querem que pensemos que as histórias feministas e dos direitos homossexuais são secundárias, não são importantes, que precisamos pensar primeiro na economia. Agora que estamos em crise isso se fortalece. E aumenta a homofobia dentro das instituições, junto com uma vontade do ultraliberalismo. Para mim, o ultraliberalismo e o sexismo estão mais conectados do que imaginamos. A primeira propaganda ultraliberal é a sexista. Ela começa no momento em que você nasce e lhe dizem se você está do lado dos dominantes ou dos dominados. E as duas categorias são ‘naturais’, então não há nada a fazer. Você não pode sair da categoria de dominante ou de dominado. Quando aceitamos isso, aceitamos também o liberalismo, a ordem do mercado, a autoridade religiosa. Esse é o primeiro lugar onde aprendemos a obedecer. E o fato da direita dar tanta importância à essa questão mostra que aí está a revolução”, afirmou ao blog, em 2013, a escritora Virginie Despentes.
Na França, o contexto econômico é de crise e apegar-se à identidade parece ser a saída mais fácil. Assim, no lugar de questionar o capitalismo e o sistema financeiro, prefere-se culpar xs imigrantes pela fragilidade econômica e reivindicar um país apenas para franceses “de raiz”. Hoje, tal identidade nacional não é somente territorial e familiar, mas passa também pelo gênero e está diretamente ligada à orientação sexual. Querem que xs franceses típicxs sejam brancxs, cisgêneros, heterossexuais e cujas famílias morem aqui pelo menos desde Carlos Magno.
Ao mesmo tempo, parte significativa dos imigrantes, que poderia se solidarizar com as pessoas LGBT* por experimentarem uma perseguição semelhante, opta por fazer alianças temporárias com os mesmos grupos que querem expulsá-los em defesa de um ideal de família que nem mesmo compartilham. No século passado, tanta divisão social e ódio, em meio a uma crise econômica, levaram a humanidade à guerra mundial.
“Imagine alguém segurando um cartaz em uma manifestação ‘contra a teoria do gênero’. Já vi protestos contra aborto, casamento gay e tudo mais. Mas contra uma teoria, só mesmo na França”, disse-me, na semana passada, entre risos e uma cara de surpresa, a historiadora Joan Scott (Instituto de Estudos Avançados, Princeton).
Seria quase cômico se não fosse trágico.
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