O que falta nos homens que os leva a matar as companheiras?
IVAN MARTINS
Aconteceu na manhã do domingo. Viviane batizava seu filho em companhia do namorado e da família. Ao final da cerimônia, o ex-marido dela levantou-se do fundo da igreja, caminhou até o casal e disparou contra eles. Viviane morreu na hora. Seu namorado morreu a caminho do hospital. O assassino fugiu, abrindo caminho à bala, e ainda está escondido por aí.
Essa história macabra aconteceu no domingo passado em Guarulhos, na Grande São Paulo, mas poderia ter sido em qualquer parte do país, a qualquer tempo.
Todos os anos, são mortas no Brasil quase 5700 mulheres. A média é de 472 assassinatos por mês. Os números são medonhos, mas não contam metade do drama. A vida de Viviane, que tinha 34 anos, simplesmente não cabe nessa estatística. Sua personalidade, seus sonhos, o futuro de seus dois filhos. Suas lembranças, seus medos, o momento em que as promessas de amor se transformaram em ameaças. Nada disso é mensurável e tudo foi destruído – como é destruído 5700 vezes ao ano, toda vez que um homem mata sua companheira no Brasil do século XXI.
Se você pedir a um sociólogo que explique esse massacre, ele talvez diga que os homens brasileiros estão perdendo poder. As mulheres se tornaram independentes e a violência masculina seria uma resposta a essa mudança indesejada. Colocados diante de parceiras que estudam mais do que eles, que ganham tanto quanto eles e que sentem-se donas do seu corpo e do seu destino (capazes de trocar de namorado ou de marido), os homens respondem com brutalidade. Xingam, agridem, matam.
Há um contexto cultural para a barbárie, claro. O Brasil é profundamente machista. Não é um psicopata com antecedentes clínicos que esgana a ex-namorada e vira manchete. Aqui, são centenas de mortes todos os meses, perpetradas por homens comuns, desses que andam de boné e camiseta nas ruas da cidade. Eles acham que a mulher pertence a eles, como um carro ou uma bicicleta. É uma posse que não tem direito autônomo de partir. Por isso, mais de 15 deles decidem todos os dias dar uma facada ou um tiro na mulher que não o quer mais. Esse número não cai há uma década.
Criaram-se leis para impedir a violência doméstica (como a Maria da Penha), as vítimas dão queixas na delegacia quando se sentem acuadas (Viviane fez dois boletins antes de ser morta), mas isso não detém os facínoras. Eles sentem que têm o direito de matar – uma convicção invisível que vem do berço, que é transmitida de pai para filho, que cresce nas conversas de rua e na mesa do bar. A mão do assassino é armada diariamente pela cultura que o cerca.
Mesmo assim, nem todos os homens abandonados ou contrariados agridem. Mesmo numa cultura machista, mesmo num contexto de perda de prestígio e de status social, a maioria absoluta dos homens lida com as desavenças domésticas e com as rupturas sem violência. Os assassinos e os agressores, embora sejam muitos, constituem uma ínfima minoria. Isso sugere que por trás dos desatinos homicidas existe escolha pessoal, e não apenas compulsão coletiva. A cultura brasileira talvez endosse subjetivamente a violência contra as mulheres, mas apenas uma minoria escolhe abraçá-la. Por quê?
Minha impressão é que existe um buraco nas almas masculinas. Cada um de nós tem dentro de si um ponto ao qual é possível se recolher em momentos de dor. Em muitos homens, esse lugar de recolhimento não existe. Exposto ao sofrimento, submetido ao desapontamento e a revezes emocionais, o sujeito não tem para onde correr no interior de si mesmo. Ele se vê diante de um vazio que impede o luto e a pacificação. Só há a raiva, o medo e a sensação insuportável de abandono. Como se fosse criança. A violência é a resposta primitiva a esses sentimentos intoleráveis. É o sintoma de uma espécie de doença.
Acho que na alma feminina esse buraco é mais raro, ou talvez seja menor.
De alguma forma, a cultura das mulheres, de mãe para filha, incentiva algum recolhimento e o convívio com os seus próprios sentimentos. Muitos dirão que é genético, eu creio que é ensinado. As mulheres aprendem lentamente a se conhecer melhor e a estar mais próximas dos seus sentimentos. São mais sinceras consigo mesmas, me parece. No mundo feminino, parece haver menos alienação emocional, algo que sobra entre os homens. Os rapazes - isso está documentado - têm enorme dificuldade em falar de si mesmo e dos seus sentimentos. Não se trata apenas de timidez ou indiferença. É desconhecimento. Eles não conseguem expressar o que sentem e tampouco dizer o que são. Eles simplesmente não sabem. Vivem voltados para fora. Gritam, lutam, correm atrás das garotas. Mas, dentro de si, carregam um turbilhão de emoções sem vozes. É um silêncio aterrador, que pode durar a vida inteira.
Há algo de trágico nisso. O vazio interior, a inabilidade de expressar sentimentos e a incapacidade de lidar com eles, tudo isso forma uma espécie de bomba relógio. As relações entre homens e mulheres provocam emoções intensas e potencialmente dolorosas. Precisam ser mediadas pela compreensão e pelas palavras. Quando essa mediação está ausente, fica-se à mercê de sentimentos primitivos, como o medo e a raiva. São eles que detonam a bomba da violência.
Obviamente nada disso é inevitável. No mundo inteiro os homens são homens, mas em muitas partes do planeta a epidemia de violência contra as mulheres foi eliminada. Isso tem a ver com as leis e com os costumes. Sobretudo, tem profunda ligação com a educação. Ela proporciona a melhor compreensão do mundo e de si mesmo. Ela dá voz aos sentimentos e permite que eles se articulem de forma civilizada. Ela empurra para o fundo de nós o instinto primitivo de violência. Depois de repetidas gerações de pessoas instruídas, criam-se dentro das sociedades tabus poderosos contra os abusos e o uso da força. Assim se suprime a epidemia de mortes de mulheres.
Sempre haverá facínoras e desequilibrados. De quando em quando, um homem transtornado de ciúme matará. Uma mulher enlouquecida pelo abandono matará. Um jovem sufocado em sentimentos terríveis tirará sua própria vida. Isso acontece desde o início dos tempos, em toda parte. É provável que jamais desapareça. Mas chegará um tempo, no Brasil, em que uma morte dessas causará espanto e debate. Será tão raro que as pessoas se debruçarão apiedadas sobre a tragédia. Comentarão sobre a misteriosa natureza humana, seus desvãos sem luz, seu terrível potencial para o incompreensível. Eu espero estar vivo para presenciar esse momento. Eu e milhares de mulheres que terão sido poupadas de uma morte absurda e obscena.
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