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terça-feira, 11 de agosto de 2015

“Corpos que têm uma vagina são vistos como violáveis”, aponta especialista

Rute Alonso (crédito: Felipe Campos)
Rute Alonso (Foto: Felipe Campos)
(Luciana Araújo/Agência Patrícia Galvão, 06/08/2015) Rejeição familiar ou cárcere doméstico, estupros corretivos, invisibilidade nas políticas públicas e violências institucionais múltiplas são parte da existência das mulheres lésbicas, bissexuais ou trans em nossa sociedade.

Agência Patrícia Galvão conversou com Rute Alonso durante a produção do Dossiê Violência contra as Mulheres. Confira abaixo a íntegra da entrevista com a bacharel em Direito, presidenta da União de Mulheres de São Paulo e coordenadora do programa de Promotoras Legais Populares desenvolvido por essa organização da sociedade civil. Rute também foi integrante do Conselho Municipal da Atenção à Diversidade Sexual de São Paulo.

Como a questão da orientação sexual se relaciona com outros marcadores de violência de gênero e raça nas agressões a mulheres lésbicas e bis no Brasil?
Nossa estrutura de patriarcado faz com que não se consiga pensar em coisas que saiam da proposta heterossexual, branca e masculina, dificulta pensar em uma orientação sexual que não seja heterossexual. E é ai que geralmente é imposta a violência contra mulheres lésbicas e homens transexuais, vistos como corpos que, pelo fato de terem uma vagina, são violáveis. E quando você soma a essa realidade outros marcadores, dá para imaginar como é a existência da mulher lésbica ou bissexual, negra, com deficiência, migrante, imigrante. Quando somamos esses fatores aumenta uma invisibilidade que também é violenta. Por exemplo quando você chega a um atendimento médico e sua sexualidade é ignorada completamente. Não é incomum também a violência sexual contra a mulher lésbica, como uma forma de dizer ‘você não tem lugar’. E isso fica invisível. Como ela pode levar isso para os serviços de saúde, de segurança ou o judiciário?

E quais são as especificidades e semelhanças nas violências sexual e doméstica contra mulheres lésbicas, bis ou trans?
Existe até uma resistência no movimento de mulheres a compreender que mulheres trans e travestis sofrem violência de gênero, também pelo fato de se referirem mulheres, de reivindicarem o que é feminino. As pessoas não entendem que identidade de gênero e orientação sexual são coisas diferentes, e não necessariamente caminham juntas.
Dentro de casa essas mulheres estão expostas ao controle de sua sexualidade. Então, uma mulher lésbica sofre cárcere em casa para que não possa se relacionar ou a violência sexual de irmãos, pais ou outros homens, para que ela “aprenda” a gostar de um pênis, que é o chamado “estupro corretivo”. E diante de uma sociedade toda que se opõe, em alguns casos a lésbica ainda pode ter um namoro com um homem cis, em uma tentativa de entender a própria sexualidade e se posicionar; também existe aí uma violência.
Nos casos das travestis e transexuais, elas são frequentemente vítimas de violência sexual, por causa de um senso comum que diz: ‘ah, é isso que você gosta?’. Então elas são estupradas para desestimular esse processo.
Outra violência importante é a rejeição da família, que a coloca para fora de casa e nega o tratamento pelo nome social. Isso são violências que as pessoas acabam aceitando porque, principalmente para as transexuais, existe muita violência física, então algumas delas relatam que já desistiram de pedir que a chamem pelo nome feminino dentro de casa, “desde que não me batam”. Mas temos que deixar claro que isso é um jeitinho de conseguir manter as relações familiares independentemente da violência que sofrem.

Pensando no papel da imprensa nesse debate, é muito importante informar que, mesmo que não se bata na filha, ela vai deprimir, adoecer, se continuar a ser tratada como um corpo masculino.
Sim. Os índices de suicídio de adolescentes LGBT são elevadíssimos, porque existe a própria questão de entender sua sexualidade, sua identidade e essa relação de exclusão. É violência quando, no ambiente familiar, lhe tiram o nome social ou também quando a mídia vai falar sobre essa travesti ou transexual e sem nenhuma necessidade expõe o nome de registro dela, ou quando colocam sempre um tratamento masculino.
Fala-se muito que, em relação às travestis e transexuais, elas não conseguem nem ter uma morte digna – geralmente são mortes violentas, assassinatos. E quando se vai fazer a memória desta morte o jornalismo outra vez violenta a identidade daquela pessoa. Sem falar em toda carga que a palavra “travesti” traz em nossa sociedade, que tem um elemento marginal. E o jornalismo coloca essa palavra para quase “justificar” todas as brutalidades que foram feitas com ela. Constrói-se uma narrativa de uma morte desprovida de direitos para uma vida desprovida de direitos.

A exibição das imagens dos corpos violentados de mulheres trans e travestis é também muito mais comum do que nos casos dos assassinatos de pessoas não trans (ou cisgênero).
Sim. Um exemplo disso é o recente caso da Verônica Bolina e de quanto circulou a imagem dela desfigurada, com os seios à mostra. Houve uma permissividade, porque além de travesti ela era uma criminosa e negra. Então, uma forma de justificar a violência e a agressão é sexualizar esse corpo, relatar que ela foi agredida porque entrou na carceragem e ficou se masturbando. É preciso pensar no quanto você retira direitos quando sexualiza uma pessoa, despersonaliza para hipersexualizar.

E a violência dentro dos relacionamentos homoafetivos?
Esse é um tema que precisa ser abordado. Muitas vezes, em meio a tantas violações, tantas restrições de direitos, é importante dizer que isso é violência também, que está inclusive tipificada na Lei Maria da Penha. Pelo fato de que a sociedade a rejeita tanto, às vezes a mulher pensa que tem que agradecer por ter alguém que a ame ainda que lhe bata.
É preciso pensar também na perversidade que existe quando uma pessoa que ainda não assumiu a orientação sexual ou mesmo a sua identidade de gênero precisa buscar ajuda em relação a essa violência. Como ela vai superar essa situação se ela não pode revelar que a parceira ou parceiro está sendo violento, se a sociedade toda está contra ela? Então você tem o preconceito e a discriminação como fatores que corroboram e até potencializam a violência.

E quais são os caminhos para enfrentar essa violência e afirmar direitos, e como a mídia pode ajudar a difundir?
Uma coisa importante é que a violência seja divulgada em sua complexidade, e não apenas como algo para impressionar a população. A mídia deve pensar qual será o efeito de uma informação que é veiculada de forma por vezes rasa, reforçando o senso comum, os estereótipos, o que está posto na sociedade como se fosse o adequado.
A outra questão é entender esse fato jornalístico envolve uma pessoa, a pauta é uma pessoa. Assim, é importante pensar se a informação que vai ser veiculada respeita ou não a dignidade da pessoa humana. Usando como exemplo uma travesti, é preciso pensar de que forma você, jornalista, gostaria de ser tratado. Sobre esse corpo feminino que eu vejo, qual é a necessidade de reportar o nome do registro civil?
Às vezes a pessoa não entende de travestis e transexuais e, quando a pauta chega ela não se debruça sobre o assunto, pra entender a importância da designação para a pessoa relatada. Por exemplo, quando vai entrevistar uma travesti ou transexual, a imprensa não pensa em perguntar ‘de que forma você quer ser tratada?’, ou como uma pessoa que é travesti e foi vítima de violência chegou àquela situação, por que uma travesti está em situação de prostituição, por que está tão à margem de direitos?

Inclusive exposta à violência que muitas sofrem no trabalho, na prostituição, por parte de clientes e policiais.
Sim, muitas delas são mortas, estupradas pelo cliente. E a discriminação da prostituição é uma violência também. Ser prostituta ou profissional do sexo na nossa legislação não é crime, e o fato de ela negociar e ter relações sexuais como forma de sustento não a torna uma criminosa e nem justifica nenhuma violência. A busca do sexo na calada da noite, escondida da sociedade, é também uma violação à sexualidade dele, cliente, que culmina na violência contra a mulher. Ou o modo como se justifica que a mulher foi morta porque o cliente não quis pagar o serviço. Então é importante que o jornalista, ao narrar o fato, não aumente a violação de direitos dessa mulher lésbica, transexual ou travesti.

Contato da fonte:
Rute Alonso, bacharel em Direito, presidente da União de Mulheres do Município de São Paulo e coordenadora do projeto Promotoras Legais Populares.
mariaderute@gmail.com

Agência Patrícia Galvão

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