Em cartaz nos cinemas brasileiros, obra 'O Julgamento de Viviane Amsalem' trata de maneira ficcional realidade que ainda persiste no país do Oriente Médio
“Em Israel, uma mulher divorciada come merda”, diz uma personagem secundária do filme O Julgamento de Viviane Amsalem, que chegou aos cinemas brasileiros na última quinta-feira (20/08). Contudo, o que o trabalho da dupla de diretores Ronit e Shlomi Elkabetz mostra é que há um grupo de mulheres no país que sofre ainda mais: aquelas que querem se divorciar, mas são impedidas de seguir adiante com esse desejo por causa de um sistema de regras arcaico.
Por não haver casamento civil em Israel, apenas os rabinos podem legitimar uma união ou sua dissolução. O divórcio, porém, segundo relata o filme, só é concedido por um tribunal rabínico com a anuência do marido ou quando há acusações muito graves.
Divulgação
Filme israelense 'O Julgamento de Viviane Amsalem' está em cartaz nos cinemas brasileiros
Na história ficcional do filme, Viviane (papel realizado pela diretora Ronit Elkabetz) quer se separar de Elisha (Simon Abkarian) por um motivo simples: ela não o ama mais, não suporta a ideia de seguir vivendo sob o mesmo teto que ele, apesar de considerá-lo um bom homem, que cumpre com suas obrigações financeiras. Acontece que o marido se mostra irredutível na posição de não se separar, o que joga a mulher em uma espécie de limbo entre a condição de casada e divorciada.
Como prenuncia o título, todas as cenas do longa-metragem são passadas no edifício do tribunal. Esta escolha serve para acentuar a ideia de aprisionamento da protagonista, que só voltará a ter uma real liberdade quando conseguir o divórcio. Desse modo, o enredo acompanha todas as audiências realizadas sobre este caso ao longo de cinco anos.
A monotonia que esta proposta poderia sugerir não é verificada na tela graças a um trabalho notável da direção e do elenco. Explorando ao máximo a sala do tribunal com planos que buscam os detalhes das expressões dos personagens ou que fazem um recorte específico do local, sempre dando margem para o espectador tentar entender o que ocorre fora de campo, os cineastas demonstram pleno controle sobre forma e conteúdo do trabalho.
Exemplo disso se verifica quando a defesa de Viviane aponta a incoerência de um tribunal que se resigna quando dois amigos homens brigados não se perdoam, mas que rejeita a hipótese de que um casamento seja desfeito pelo desejo da mulher. Neste ponto, o advogado tenta utilizar pela primeira vez a mesma lógica moral dos juízes rabinos a favor de sua cliente, e os diretores atestam essa mudança também no visual do filme, ao enquadrarem o defensor de maneira frontal ao júri, sugerindo pela imagem que, naquele momento, ele está se juntando ao grupo de julgadores.
Assista ao trailer do filme 'O Julgamento de Viviane Amsalem':
Com nuances como essa, o filme vai traçando aos poucos um retrato multifacetado da sociedade israelense. A lógica machista predominante é dissecada pelo testemunho de uma mulher que não parece se dar conta de que reproduz um discurso preconceituoso; o choque de gerações entre a tradição religiosa e a modernidade é representado pelo advogado de Viviane, filho de um rabino importante; e a posição emancipatória e independente da mulher é vista na mudança de vestuário e de hábitos da protagonista, que chega a ser repreendida pelos rabinos simplesmente por soltar o cabelo.
Como citado pelos próprios diretores em entrevistas, uma das referências utilizadas na realização do filme foi a história de Joana D’Arc, mais precisamente a versão cinematográfica realizada em 1928 pelo dinamarquês Carl Dreyer. De fato, a secura dos closes e o retrato do sofrimento de uma mulher são fatores que relacionam as protagonistas dos dois filmes.
O trabalho israelense também faz referência à versão da história de D’Arc feita pelo francês Robert Bresson em 1962, notadamente na repetição de um plano que acompanha os pés da personagem rumo à sua trajetória final.
Evitando as armadilhas do maniqueísmo e do melodrama, O Julgamento de Viviane Amsalemretrata um martírio típico de nossos tempos.
*Adriano Garrett é editor do site Cine Festivais
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