Diante do debate que tem se colocado a arena pública nos últimos dias em torno da inclusão ou não da pauta de gênero nos planos estaduais e municipais de educação, a comunidade científica em geral e antropológica em particular vem se manifestar para tornar clara a importância do “gênero” como categoria analítica e política, que complexifica as diferenças e, mais que isso, coloca em pauta as desigualdades em torno do par masculino/feminino. A nota que se segue, assinada pelo coletivo ASA, é, assim, instrumento de conhecimento (para a comunidade científica e para a sociedade civil) e também instrumento político da maior importância, já que se opõe de maneira veemente aos retrocessos nas políticas de direito à diferença.
Manifesto Pela Igualdade de Gênero na Educação
Manifesto pela igualdade de gênero na educação:
por uma escola democrática, inclusiva e sem censuras.
Enquanto grupos de pesquisas, instituições científicas e de promoção de direitos civis,
as instituições abaixo assinadas vêm a público manifestar repúdio à forma deliberadamente
distorcida que o conceito de gênero tem sido tratado nas discussões públicas e denunciar a
tentativa de grupos conservadores de instaurar um pânico social, banir a noção de “igualdade
de gênero” do debate educacional e reificar as desigualdades e violências sofridas por homens
e mulheres no espaço escolar.
Signatário dos principais documentos internacionais de promoção da igualdade (como
a Convenção Para Eliminar Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher – CEDAW; o
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e da Campanha pela igualdade
e direitos de população LGBT da ONU), o Brasil acompanhou a institucionalização dos estudos
de gênero enquanto um profícuo campo científico nas últimas décadas e conta hoje com
centros de pesquisas interdisciplinares reconhecidos internacionalmente. As discussões de
gênero ganharam legitimidade científica nas maiores universidades brasileiras a partir dos
anos 1970 e, desde então, têm norteado políticas públicas para garantia de igualdades
constitucionais.
Ao contrário de “ideologias” ou “doutrinas” sustentadas pela fundamentação de
crenças ou fé, o conceito de gênero está baseado em parâmetros científicos de produção de
saberes sobre o mundo. Gênero, enquanto um conceito, identifica processos históricos e
culturais que classificam e posicionam as pessoas a partir de uma relação sobre o que é
entendido como feminino e masculino. É um operador que cria sentido para as diferenças
percebidas em nossos corpos e articula pessoas, emoções, práticas e coisas dentro de uma
estrutura de poder. E é, nesse sentido, que o conceito de gênero tem sido historicamente útil
para que muitas pesquisas consigam identificar mecanismos de reprodução de desigualdades
no contexto escolar.
Embora a Constituição Federal Brasileira de 1988 garanta, em seu Artigo 6º, que a
Educação é um direito irrevogável de todas e todos e assegure a igualdade de condições para
acesso e permanência escolar, pesquisas mostram que esse direito é constantemente violado
a partir das estruturas hierárquicas de gênero. Um exemplo de como a desigualdade de gênero
se correlaciona com a educação tem sido visto em pesquisas que identificam o “fracasso” e as
altas taxas de evasão escolar dos meninos como consequência dos referenciais de
masculinidades difundidos socialmente. Uma identidade masculina baseada na agressividade e
na indisciplina tem cada vez mais afastado os meninos dos bancos escolares (37,9% deles
segundo dados do IBGE em 2011), negando-lhes seu direito à educação e reproduzindo uma
cultura da violência. Professoras são vítimas de agressões em sala de aula, meninas são
estupradas por seus colegas de turma e meninos são afastados das escolas neste ciclo de
desigualdade perpetuado por noções hierarquizadas do que é ser homem ou mulher. Também
são notáveis, por outro lado, as pesquisas que mostram o quanto a discriminação de gênero
contra as pessoas que fogem dos padrões socialmente estabelecidos de identidade ou
sexualidade tem desencadeado processos institucionalizados de discriminação, agressões e
exclusão escolar: as violências contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis, mulheres transexuais
e homens trans excluem essa população do direito constitucional à educação e contribuem
para as estatísticas que fazem do Brasil um dos países mais inseguros para pessoas LGBT
(conforme demonstra o relatório do Grupo Gay da Bahia de 2012 e o relatório de violência
homofóbica da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República).
Quando se reivindica, então, a noção de “igualdade de gênero” na educação, a
demanda é por um sistema escolar inclusivo, que crie ações específicas de combate às
discriminações e que não contribua para a reprodução das desigualdades que persistem em
nossa sociedade. Falar em uma educação que promova a igualdade de gênero, entretanto, não
significa anular as diferenças percebidas entre as pessoas (o que tem sido amplamente
distorcido no debate público), mas garantir um espaço democrático onde tais diferenças não
se desdobrem em desigualdades. Exigimos que o direito à educação seja garantido a qualquer
cidadã ou cidadão brasileira/o e, para isso, políticas de combate às desigualdades de gênero
precisam ser implementadas.
Além disso, é preciso ainda ressaltar que, acima das negociações legislativas locais, a
Constituição Nacional Brasileira de 1988 estabelece também que “é livre a expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou
licença” e o ensino deve estar baseado no princípio de liberdade de divulgação do pensamento
e do pluralismo de ideias. Assim, não cabe às esferas locais de decisão realizar ocultamentos,
censuras ou proibições de discussões reconhecidas no campo científico e, muito menos, a
imposição de uma visão de mundo delimitadora nos currículos escolares. Em defesa do
pluralismo de saberes e do reconhecimento do campo científico nacional e internacional,
defendemos que é um direito fundamental das/os estudantes brasileiras/os o acesso aos
conhecimentos e pesquisas produzidos pelos estudos interdisciplinares sobre o conceito de
gênero. Nossa defesa é por uma educação democrática, inclusiva e, também, que repudie
qualquer forma de censura.
SOS Ação Mulher e Família assina embaixo.
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